Ex-granjeiro, piloto de provas e pai de alguns dos carros
mais célebres de todos os tempos, como o Cobra, o Mustang Shelby, o Ford GT500
e o Dodge Viper, a história de Carroll Shelby mostra como um homem pode ir além da própria lenda
Se há algum lugar no mundo onde se pode dizer seguramente que
não existem mais homens como antigamente, esse lugar é o Texas, nos Estados
Unidos. Nessa terra seca e inóspita, da qual se diz que a vida humana so passou
a ser possível depois da invenção do ar condicionado, se fizeram os vaqueiros
que lutaram contra os índios, empurraram para longe os mexicanos e implantaram
suas fazendas extensivas de gado no ambiente agreste. É também o estado dos
pioneiros que amealharam fortunas com o petróleo. Com chapelões, botas de couro
e calças de índigo, eles são amantes da natureza, das mulheres e de carros. Não
se fazem mais homens como no velho Texas, é verdade. Mas há alguns homens do
velho Texas invulneráveis ao tempo. Um deles é Carroll Shelby.
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| Shelby e o Mustang clássico: transformador do "carro da secretária" num ícone da esportividade |
Falecido em 2012, Shelby é um dos nomes na galeria onde estão
Bill Ford e Lee Iacocca. Como eles, recebeu o prêmio Executivo do Ano da
Indústria Automobilística, concedido pela Automotive Industry Action Group
(Aiag). Tornou-se personagem lendário no mundo do carro, como
responsável pela criação de alguns dos maiores ícones sobre rodas de todos os
tempos, como o Cobra, sensação dos anos 1960, o Dodge Viper, superesportivo da
Chrysler, e o Ford GT 500, lançado em 2003. Além do célebre Shelby
GT, a versão esportiva do Mustang, clássico dos anos 1960 relançado por Shelby
em 2007 em consórcio com a Ford, a companhia onde deixou sua marca. “Siga suas
paixões e dará tudo certo”, aconselhou Shelby ao receber o prêmio da Aiga em
2008, numa cerimônia em Detroit. “É uma receita tão antiga quanto verdadeira.”
No fim da vida, já com 87 anos, Shelby ainda dividia seu
tempo entre administração de seus ranchos no Texas e Bel-Air Country Club, onde
encontrava amigos como Barron Hilton, dono da cadeia de hotéis que leva seu
nome, avô de Paris Hilton, a quem deserdou por mau comportamento. Desde 2003,
Shelby voltara a trabalhar como consultor da Ford, ou “inspirador” dos carros
esportivos da marca, especialmente no desenvolvimento do Ford GT 500.
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| O Ford GT500: a montadora americana fez frente à Ferrari, afinal |
Sua maior
contribuição nesse período, porém, foi ressuscitar o Shelby Mustang, que ganhou
uma versão contemporânea à altura do velho mito. Como seu predecessor, o Shelby
GT500, lançado em 2007, foi também uma versão de alta performance do Mustang.
Um carro que poderia ter sido inventado hoje, mas tem um apelo especial para os
saudosistas que o admiravam desde a infância, aquele que todo garoto queria ter
quando crescer, com o poder de tornar legendário.
Sem nunca ter sido engenheiro ou designer, Shelby é um
criador instintivo de carros. Sua formação vem da experiência pessoal e de um
certo espírito indomável, que ele encarnou tão bem quanto o garanhão negro de
crina longa, nome e símbolo do Mustang. Na verdade, sua ligação com os carros
surgiu por acaso. Filho de um carteiro, ele nasceu em Leesburg, no Texas.
Serviu na Segunda Guerra Mundial como instrutor de voo e piloto de testes da
Força Aérea norte-americana. Ao deixar o serviço militar, virou granjeiro com
dinheiro emprestado.
Dizimadas por uma doença aviária, suas galinhas o lançaram na
miséria. Sem outro capital além de si próprio, decidiu se tornar piloto de
corridas. Primeiro como amador e depois profissional, Shelby acumulou vitórias
e uma ótima reputação. Correu nos anos 1950 pela Cad-Allard, Aston Martin e
Maserati. Na equipe de Donald Healey, num Austin-Healy 100S, bateu 16 recordes
de velocidade. Por dois anos consecutivos, em 1956 e 1957, foi considerado o
piloto do ano pela revista Sports Illustrated, a principal publicação esportiva
da época nos Estados Unidos.
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| Campeão do Riverside Grand Prix de 1960 |
Tornou-se um símbolo norte-americano nas pistas. Com a equipe
da Aston Martin, venceu em 1959 pela primeira vez a prova das 24 Horas de Le
Mans. Shelby disputou também provas de Fórmula 1 em 1958 e 1959, até fundar uma
escola para pilotos e uma pequena empresa que adaptava modelos convencionais: a
Shelby-American Company. Com ela, Shelby transformaria sua sensibilidade para
carros esportivos no negócio mais apaixonante de sua vida.
Em sua loja, Carrol Shelby construiu o famoso Cobra,
improvisando um motoro Ford V-8 num pequeno e leve conversível inglês chamado
AC Ace. Com esse carro, a equipe Cobra Racing venceu em 1964 as 24 horas de Le
Mans, corrida amis prestigiosa da época. Nesse enduro, no nordeste da França,
Shelby conseguiu o inacreditável: bater a Ferrari, então considerada invencível
por sua velocidade e resistência. O sucesso do modelo Cobra o levou a produzir
outro carro adaptado, o Shelby GT 350, versão mais potente e agressiva do
Mustang convencional, numa série limitada que marcou época.
Com grade dianteira e exaustores laterais que pareciam rugir
como um tigre quando acelerava, além da dupla faixa central pintada na
carroceria, o GT 350 era produzido por Shelby em parceria com a West Custom
Customs, uma loja de mecânica de automóveis que colocava em prática ideias
conceituadas por ele. O expediente de mexer em carros já existentes valeu a
Shelby o apelido de Bolly Sol Estes, um bandoleiro de colarinho branco que
fraudou o governo texano num esquema de subsídios agrícolas na época. Ao ver o
que ele podia fazer com seus carros, porém, a Ford decidiu torna-lo parceiro.
Colocou-o para dentro do seu negócio como consultor na área de desenvolvimento
de carros esportivos e de competição.
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| O Mustang Shelby 500 na sua primeira e clássica versão (acima) e hoje: o "bandoleiro" vira sócio da grande indústria |
Aventureiro, galanteador, com sotaque e jeito de vaqueiro, Shelby
sabia transpor limites e ganhar simpatia. E não apenas nos negócios. Depois de
se divorciar, em 1960, de Jeanne Fields, que lhe deu três filhos, antou uma
ecumênica lista de conquistas, que incluiu a japonesa Akiko Kojima, vencedora
do Miss Universo de 1959, e prosseguiu com mais cinco esposas oficiais. Uma
delas foi a atriz Jan Harrison, que Shelby havia certa vez levado para casa juntamente com o troféu de uma corrida que
ela lhe entregara.
Ele ainda se casou com uma neo-zelandesa, uma quarta esposa
da qual mal se lembrava o nome (“forma apenas alguns meses”, justificava), uma
quinta que prometeu cuidar dele depois de seu transplante de coração e a
sueca Lena Dahl, falecida em 1997 num acidente automobilístico. Sob anunciada
determinação de jamais se casar novamente durou quatro meses. Sua última mulher
foi Cleo, uma ex-modelo britânica que disputava provas de rali. Proibido de
pilotar aviões desde o transplante, Shelby fez com que ela tirasse um brevê de
piloto para poderem viajar juntos.
O ímpeto de Shelby se espalhou por outros negócios, como uma
indústria de pimenta, mas o que traduziu melhor sua personalidade sempre foram
os carros. A parceria com a Ford se tornou um marco, com forte influência no
design e na engenharia de carros. A ideia por trás do sucesso dos carros de
Shelby era a de que não bastava beleza num modelo esportivo: a performance
devia ser fundamental. A isto, ele acrescentou a ideia de que um esportivo
podia e deveria também estar ao alcance do bolso. Preocupava-se em fazer carros
melhores a preços razoáveis. Daí criar esportivos a partir de carros de série.
Aproveitava as partes produzidas em escala, de modo a
baratear o custo – berço dos hoje chamados carros “topo de linha”. Shelby
industrializou o que faziam amantes de carro que envenenava, suas máquinas no
fundo do quintal, utilizando carrocerias leves de modelos charmosos com motores
de máxima potência. Dinheiro sempre foi
importante para ele – mais até do que carros potentes.
É famoso o encontro de
Shelby em 1966, quando ainda era um piloto de provas, com Enzo Ferrari. Este o
chamou para dirigir um de seus carros, como se o mero convite fosse um
privilégio. Shelby perguntou: “qual é o salário?” Mesmo ofendido, Ferrari
mencionou uma cifra. Shelby simplesmente disse: “Não dá”. O estilo imperial da Ferrari e da sua equipe
o irritavam. E a rivalidade entre as equipes cresceu ao longo dos anos.
Impossibilitado de correr por causa da angina, que já
anunciava a gravidade de sua doença cardíaca, Shelby deu um jeito de não ficar
longe das pistas. Em 1963, chegou a escrever uma autobiografia, ou bota-fora,
com apenas 37 anos. Mudou para Los Angeles, onde os contatos para começar uma
empresa eram mais fáceis, dada a sua reputação como piloto. Para fazer o primeiro modelo Cobra, vendeu a
ideia aos fabricantes do AC Ace de que poderia colocar os motores Ford e depois
vendeu à própria Ford que poderia colocar seus motores na carroceria AC, desse
que pudesse pagá-los a prazo.
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| Shelby com o Cobra no seu lançamento (acima) e o carro, hoje: máquina legendária |
Precisava produzir
pelo menos 100 carros para que o modelo fosse considerado de série. E assim
competia em provas da categoria Gran Torino (GT). Mais uma vez, Shelby teve
sorte. Na época, a Ford procurava construir uma imagem de confiabilidade e
qualidade. Ele encontrou Lee Iacocca, então vice-presidente da companhia e lhe
disse que precisava de 25 mil dólares para desenvolver um carro que capaz de
superar o Corvette. Iacocca deu-lhe dinheiro, antes que Shelby fosse dar uma
“mordida em mais alguém”.
Shelby pintou o Cobra de cores diferentes e inesperadas, para
ser fotografado pelas revistas especializadas, de modo que se pudesse pensar
que se tratava de mais do que um carro. Entre colecionadores, o bólido, com o
desempenho de uma bala, do qual não foram feitos mais que mil exemplares, é
negociado hoje a preços que giram em torno de meio milhão de dólares, feito uma
verdadeira obra de arte. Shelby trabalhou duro na sua fábrica na Califórnia. Em
pouco tempo, o Cobra já não perdia em provas para nenhum Corvette. A promessa
de Shelby a Iacocca estava sendo cumprida.
Dali em diante, todos começaram a prestar mais atenção no que
ele fazia. Em seguida, o Cobra bateria a até então invencível Ferrari GTO nos
estados Unidos, em provas como as de Daytona e Sebring e mais tarde, na Europa.
Enzo Ferrari tinha razões para temer o texano, que entre outras chateações lhe
levou o piloto Phil Hill. Em 1964, a equipe de Shelby levantou a taça em Le
Mans, com Bob Bondurant e Dan Gurney como pilotos. No ano seguinte, arrebatou o
título mundial da classe GT.
A competição nas pistas refletia também uma luta nos
negócios. Henry Ford II queria comprar a Ferrari, mas o teimoso comendador italiano
não era fácil de convencer. O dono da maior montadora de carros do mundo na
época decidiu, então, que, se não podia comprar a companhia italiana, faria
dela poeira nas pistas. Assim, entregou a Shelby o projeto do Ford GT40, o carro
com o qual pretendia bater o inimigo peninsular. Não poupou dinheiro. “Tínhamos
que tomar cuidado com as ideias que Carroll queria colocar em pratica”,
relembrou Jacque Passino, diretor esportivo da Ford nos anos 1980, que mantinha
contato direto com Shelby. Para este, não havia limites que o carro não pudesse
ultrapassar.
Em 1950, havia 30 GTO disputando a prova. A vantagem dos dois
que curaram a linha de chegada em primeiro e segundo lugares para o resto dos
concorrentes era tão grande que eles precisaram diminuir a velocidade para
aparecer juntos levando a bandeirada. Carroll Shelby tinha então um grande
capital: a simpatia do chefão.
Recebeu a incumbência de melhorar o Mustang, um carro de design
primoroso, cujo desempenho não acompanhava a imagem de garanhão que transmitia.
Os próprios funcionários da Ford gozavam o veículo, dizendo que era “o carro da
secretária”. A companhia embarcava Mustang completos para a Shelby American e
lá eram transformados no Shelby Mustang GT350. Shelby endurecia a suspensão,
tirava os bancos traseiros, colocava entradas de ar de aspecto agressivo e dava
mais potência ao motor. O melhor de tudo: enquanto um Cobra custava mais de 6
mil dólares, um Shelby Mustang podia fazer seu proprietário voar a um preço bem
mais acessível: 4 mil dólares, ou cerca de 30 mil dólares em dinheiro atual.
Até Ford cortar seu investimento em competições, incerta sobre
o relacionamento direto entre o desempenho das pistas e as vendas, Shelby
aproveitou para ganhar muito dinheiro. Produziu uma versão mais sofisticada do
Mustang, com melhor acabamento e motor ainda mais potente: o primeiro Shelby
GT500. A base de suas ideias começou a parecer obsoleta nos anos 1980, quando a
indústria norte-americana foi ameaçada pela competição dos carros japoneses,
eficientes e baratos. Surgiram preocupações antes impensáveis, como controlar a
emissão de poluentes para ser ecologicamente correto. “A performance deixou de
ser tão importante”, lamentava ele. Foi assim por mais de 20 anos. Uma mudança
de presidente na Ford e os investimentos que Shelby fazia nas suas fazendas no
Texas acabaram por afastar parceiros que antes se davam tão bem.
Ele se envolveu em negócios em países africanos, como Angola,
Botsuana e República centro-africana, onde assumiu o controle dos direitos de
caça e entrou no comércio de diamantes. Com sua experiência na África, Shelby
dizia não ter ganho muito dinheiro, mas se divertido um bocado. Nos Estados
Unidos, plantou pimenta em suas terras no Texas para lançar em 1970 a Shelby
Texas Chili Mix.
Tentou desenvolver carros de alta performance em parceria com
a Oldsmobile, na qual ele planejava produzir o Series 1, modelo ao estilo do Cobra,
com um potente motor da marca. Contudo, o Series 1 morreu na prancheta depois
que o principal executivo da Oldsmobile, uma empresa do grupo General Motors,
foi afastado da companhia. Só nessa operação, Shelby dizia ter pedido 10
milhões de dólares.
Lee Iacocca, então na sua célebre campanha para reerguer a
Chrysler, o chamou para colaborar com os novos projetos. Shelby fez uma versão
turbinada de um carro chamado Omni e esteve ao lado dos engenheiros do
desenvolvimento do Dodge Viper, carro esportivo com o qual a companhia
pretendia mostrar sua face mais ousada e futurista. Sua participação foi
limitada pelo transplante, recebido graças a um aneurisma que derrubou em Las
Vegas um homem de 34 anos sobre uma mesa de jogo.
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| Com o Viper: uma face mais ousada e futurista para a Chrysler |
Com a recuperação da indústria norte-americana e o
desenvolvimento da tecnologia de controle de poluição, houve o ressurgimento da
produção de carros de alta performance. Em 2003, Shelby voltou à Ford como
consultor do projeto do Ford GT, que resgatou do limbo o principal carro da
montadora destinado à velocidade.
Lançado em 2007, o Shelby GT500 reacendeu o charme de sua
primeira versão, em linhas estilizadas, numa junção ente o passado e o que
havia de mais contemporâneo em design e tecnologia. Ao preço de 40 mil dólares
no mercado americano, o GT 500 era um monstro com motor V8 de 5,4 litros e
500cv, na melhor tradição americana dos muscle cars. Mais leve devido ao
emprego do alumínio na carroceria, esse Mustang top de linha veio praticamente
como um carro de corrida, capas de alcançar 100 km/h em 4,5 segundos, partindo
do zero. O controle eletrônico impedia o velocímetro de ir além de 250 km/h,
mas podia alcançar 300 km/h.
Com a mesma potência do Ford GT, Corvette e Dodge Viper, era
mais barato, cerca de 42 mil dólares: a fórmula perfeita segundo a filosofia de
Shelby. Feito pela Ford em Michigan na versão cupê e conversível, o GT500 foi
feito para não deixar escapar um detalhe aos amantes da marca: a cobra de prata
incrustrada na grade dianteira, marca adicional que liga o carro ao seu
patrono.
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| A cobra de prata, marca que Shelby colocou à frente da própria marca da montadora |
Carroll Shelby nunca foi de olhar para trás. Dono de
um apartamento em Bel Air e dois ranchos no Texas, ficara do passado apenas com
uma coleção de cinco pequenos aviões e 20 carros antigos – entre eles, o
primeiro Cobra que fabricou. Poderia se considerar mais uma peça de sua
coleção, mas gostava de dizer: “O melhor carro que fiz sempre será o próximo”.
O velho texano poderia estar no panteão do mundo automobilístico já quando
deixou as pistas em 1950, ao se afastar das pistas de competição, ou ainda
quando seu coração falhou. Shelby, porém, foi um ótimo exemplo de como um homem
sempre pode ir ainda além de sua própria lenda.








Os carros feitos por Carroll Shelby, estão tão ligados na cultura americana automobilistica, que podemos ver filmes con os personagens que fizeram lenda como Steve McQueen e seu Mustang 68 verde musgo em Bullit; Elvis Presly em um de seus filmes, personificou um piloto de corridas em cima de um Cobra; e a refilmagem de "60 Segundos", no ano 2000, produziu outro clássico, um Mustang Eleanor 1967 prata e preto, dirigido por Nicolas Cage.
ResponderExcluirCarol era à frente de seu tempo, e os Cobras, eram montados no seu ninho pelo texano e de lá para as pistas...uma lenda e desejo de colecionadores de todo o mundo! Boa matéria...gostei, um abs