sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Um descobrimento de Portugal

Domingos Soares Franco é a sexta geração de proprietários da célebre casa José Maria da Fonseca, indisputada produtora de Moscatel, o célebre vinho de sobremesa que está entre as maravilhas de Portugal. Hoje vice-presidente e responsável pelos vinhos da empresa, estudou enologia nos Estados Unidos, de onde voltou cheio de ideias para ampliar e renovar os negócios da família, que toca com o irmão.

Algumas delas fazem desconfiar que Domingos está maluco, como a de curtir banana dentro de 5 mil litros de vinho. A diferença entre o louco e o gênio não é muito grande. Porém, alguns resultados mostram que Domingos de louco não tem nada.

Ele gosta da raridade, da tradição, da antiguidade, tanto quanto da inovação. Conta com prazer como encontrou 5 mil garrafas de Fonseca de 1940, completamente preservadas, debaixo de uma pilha de carvão – escondidas lá e depois esquecidas na Segunda Guerra Mundial. E como decidiu incorporar aos vinhos tintos da casa técnicas antigas de vinificação romana.

A José Maria da Fonseca faz vinhos mais populares, como o Periquita e o Trilogia, mas graças a Domingos começa a produzir também suas raridades. Desde 2007, até 20% do vinho das garrafas do José de Sousa, a marca da José Maria da Fonseca para seus melhores tintos, vem de ânforas ao estilo romano. Algumas, confeccionas por volta do ano de 1800, também se encontravam esquecidas na vasta vinícola, tão vasta que reserva grandes surpresas até mesmo aos seus donos.

Domingos aproveita-se do fato de que, pelo formato alongado e as propriedades do barro, a oxidação do vinho no processo de amadurecimento nas ânforas se dá pelos poros – e não pela superfície. Os antigos não tinham a mesma tecnologia de hoje, mas tinham sabedoria – e, em tempos de culto à comida orgânica e de volta às origens, o antigo anda mais contemporâneo que nunca.

Ele usa nessa produção artesanal outras técnicas antigas, como a do ripanço. Os romanos, que deixaram sua marca em Portugal não só na forma da “última flor do Lácio”, a língua portuguesa, como também na comida e costumes, raspavam a uva numa grade de madeira para separar a casca da uva e assim produzir o mosto.

Foi de Domingos também a ideia de introduzir no vinho tinto português a uva Grand Noir, originária do sul da França. Com isso, a célebre casa portuguesa passou também a produzir vinhos tintos especialíssimos. Abandonada na própria França, a Grand Noir se encontra hoje ao norte da Itália, ao sul da Suíça e, graças a Domingos, no Alentejo, onde os portugueses a chamam de “tinta francesa”.

“É a casta que eu gostava menos e agora odeio”, brinca ele. “Grand Noir, para mim, é chocolate preto”, diz. O segredo é a combinação da Grand Noir com outras uvas, que ele faz muito bem: os José de Sousa são vinhos complexos, com personalidade, encorpados, prolongados, perfeitos para serem servidos com pratos mais pesados, como os de caça. E não custam caro, pela qualidade. É surpreendente.

Experimente:






José de Sousa 2012. 50% Grand Noir, 40% Trincadeira e 10% Aragonês. Fica de seis a sete meses na madeira, muito forte, com muito tanino e algo de café. Ou chocolate amargo. Um grande vinho a um preço extraordinário: 113 reais. 



José de Sousa Mayor. Tem 60% de Grand Noir, 30% Trincadeira e 10% aragonês. A Grand Noir entra com a acidez e a Trincadeira oferece sua principal característica: abre e prolonga o vinho, que vai mudando na boca. 213 reais.




J 2011. 60% Grand Noir, 30% Torriga nacional portuguesa, 10% Torriga francesa. Um vinho mais fechado, com bastante tanino, que pode envelhecer muito bem. É um grande tinto, topo de linha da casa nesse segmento. É o mais caro dos três, verdadeira raridade, e rapidamente se esgotou – espera-se que a Decanter traga mais.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

David Bowie: é possível ser sempre jovem

Conheci David Bowie - não a pessoa, mas a música, o artista, o personagem - na faculdade, período da juventude em que gostamos de arte cult. Bowie nunca foi um artista popular. Era inventivo, iconoclasta, experimentalista. Chegou a fazer algumas músicas populares, como Little China Girl, mas ele foi muito mais uma influência criativa sobra uma série de artistas de várias gerações, e de um público mais refinado, do que realmente um artista pop.

Bowie, porém, era mais do que um músico. É verdade que ele chamou a atenção pelas roupas extravagantes, o visual andrógino e a onda interplanetária do final dos anos 1960, embalados pela chegada do homem à Lua. Sua obra inicial parecia feita para filmes de ficção científica, a começar pelo álbum que o fez famoso, Space Odissey. Foi pelo talento, porém, que Bowie se firmou, além da capacidade de renovação pelas fases de sua vida pessoal e artística, que o fizeram ganhar o apelido de "camaleão".

Mesmo sua aparição no cinema, que o deixou ainda mais conhecido, também foi cult. Os filmes de Bowie nunca foram um estrondoso sucesso de público, mas sempre tiveram charme, por serem vistos pela gente certa - os fãs de Bowie, principalmente. Foi assim com Fome de Viver, que eu vi também nos tempos universitarios, uma história de vampiros com a igualmente cult Catherine Deneuve. E Furyo, um filme de guerra, talvez seu melhor papel.

Bowie atravessou gerações como um símbolo da música criativa. Sua voz grave e inconfundível era o seu verdadeiro instrumento. Era perfeito porque era um esteta, que chegou a escrever um livro de estilo, Objects, sobre objetos de formas que ele admirava. Modelo de elegância, na vida e nas artes, nunca deixou de ser britânico, pela maneira perfeita como falava e se comportava. Profissional, nunca perdeu o interesse pelos outros nem a humildade, essência para sempre começar tudo de novo, como se estivesse partindo do zero, a real fonte da criatividade.

É um final de filme que Bowie tenha morrido justamente quando lançou seu último álbum, Blackstar. É preciso ouvir Bowie várias vezes para começar a gostar. Isso acontece sempre que estamos ouvindo algo novo, inédito, que busca outros caminhos. Ele fez parte da nossa educação musical e estética nos últimos 40 anos e deixa não apenas o legado como o exemplo de que é possível ser sempre jovem. "A idade não importa – o que importa é a intenção, a integridade e o poder de tocar as pessoas", disse ele à revista Rolling Stone.

Bowie morreu aos 69 anos. Mas sua obra provavelmente continuará agradando a jovens e velhos num futuro incontável, porque, como ele, não envelhece. Ao menos, para quem tem a mente aberta para entender a linguagem de um artista único.