segunda-feira, 31 de agosto de 2015

As duas regras para a construção do estilo

O padrão de elegância vem mudando ao longo dos tempos, de acordo com o avanço da tecnologia e as mudanças de comportamento. Na onda do New Look, com que Christian Dior revolucionou a moda feminina, Pierre Cardin promoveu também a maior mudança da roupa masculina. A camisa, antes sempre branca, passou a ter cor. O blazer, usado apenas para os iatistas, se tornou uma peça fundamental da roupa casual. Graças a Cardin, os homens deixaram de ser personagens de um filme em preto e branco.

Outro passo adiante deveu-se a Giorgio Armani, que desestruturou os ternos, tornando-os mais leves e moldados ao corpo masculino. A incorporação do jeans à roupa do dia a dia, com a participação especial de outro mestre, Calvin Klein, foi o golpe final na roupa clássica. Daí em diante, passou a caber ao homem o direito de escolher sua roupa. E, com isso, destacar-se na multidão. 

O resultado é que hoje temos uma grande liberdade de escolha ao vestir. Isso gera também  o risco: aquele que não encontra o seu caminho sabe que pode queimar sua imagem, tanto quanto aquele que tem essa sabedoria pode fazê-la brilhar.

O homem quer sempre parecer bem sucedido: ou por ter chegado lá, ou por querer chegar lá. Para isso, construir a imagem certa, tanto na vida pessoal quanto profissional, é essencial . A roupa é o maior cartão de visitas masculino; tem de passar a imagem desejada. Seja para alcançar algum objetivo, ou mesmo para mostrar alguma vaidade, a construção de um estilo pessoal passa pelas escolhas que fazemos da roupa.

Vestir-se bem não significa seguir modelos. Homens reconhecidamente elegantes quebraram padrões justamente como reafirmação de uma certa personalidade. Em 1901, Paul Deschanel, presidente da França, causou alvoroço ao casar-se de fraque, e não de casaca, então obrigatória. O jovem príncipe de Gales, que depois se tornou o rei Eduardo VIII - e abdicaria por amor, ao casar-se com Miss Simpson, uma plebeia - foi um contestador dos rígidos padrões da corte britânica.

"Toda minha vida fui um rebelde contra as regras do vestir, que refletiam as rígidas convenções sociais do meu universo familiar", escreveu ele em 1960, num livro intitulado "O Duque de Windsor, álbum de família". "Assim, ousei vestir-me de outros modos, que traziam mais conforto, mas também como uma maneira simbólica de aspirar à liberdade."

A roupa, portanto, serve aos nossos propósitos - e não o contrário. Com suas inovações, o Príncipe de Gales deu seu título ao padrão de tecido de que mais gostava - transportou para os paletós as riscas antes utilizadas apenas no rugby. E mais: tornou famosa a alfaiataria londrina, até hoje uma referência de elegância e criatividade.


A evolução da moda masculina: cada vez mais possibilidades

A primeira regra para a construção de uma imagem hoje é que a roupa nunca deve parecer forçada, ou seguir padrões automatizados, típicos de quem apela para um modelo por não ter opinião própria ou não saber o que fazer. Também é deselegante aquela ar de quem acabou de sair da loja, quase com a etiqueta pendurada na gola."Tudo o que está em cima do corpo deve ter a aparência de usado", já dizia em 1804 Auguste Kotzebue, dramaturgo e escritor alemão, no livro Lembranças de Paris.

A segunda regra de ouro é que o homem precisa  adequar os elementos que mais o agradam ou que ele acha necessários, de uma forma coerente e natural. Esse conjunto, que é propriamente o estilo, hoje é mais importante do que "estar na moda" - um conceito muito relativo, especialmente numa era que, com a ajuda da informação digital, coloca no tempo presente todas as influências de todos os tempos.

"Estilo nada tem a ver com a moda, ainda que esteja ligado a um compromisso com a evolução das roupas, determinada por estilistas ou acontecimentos que tragam mudanças de comportamento", escreveu na década de 1980 o jornalista Fernando de Barros, considerado o papa da moda no Brasil. "O estilo é particular. Obedece às regras padronizadoras, mas não é escravo delas. Relaciona-se com a moda, mas não se entrega a todas as suas determinações."

Por esse conceito, o homem não se mostra preso à vaidade. A roupa lhe cai de uma forma natural: ele não quer "parecer" alguém, ele "é" alguém. E transmite a impressão desejada. Expressa sua personalidade, sua imagem, seus desejos e objetivos.

Uma das necessidades essenciais do homem de estilo é a de prestar atenção nele mesmo. Conhecer a si mesmo, identificar seus objetivos e pensar nisso deve ser um exercício diário na hora de se vestir. A roupa é um jogo, que deve considerar o juiz (o olhar alheio), o momento e o lugar onde se vai estar. Ser elegante também é estar adequado.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Cinderela tropical

A cachaça já teve seu tempo de Gata Borralheira, mas hoje é princesa nas mesas mais exigentes

Foi há 20 anos, em uma viagem de aventura pelo rio Araguaia, que encontrei o Holandês. Barba loura, olhos azuis e queixo de viking, falando um português nórdico, lembrava o capitão Nemo. Era mesmo capitão, só que de uma embarcação enferrujada de três andares, ao estilo das gaiolas, onde levava turistas aventureiros para passeios em torno da Ilha do Bananal. No tempo da seca, quando o nível das águas baixava, impossibilitando a navegação, o Holandês encalhava a nau na barranca da vila de Aruanã, transformada num estranho restaurante com inclinação de 45 graus. Assim como a figura do anfitrião, o serviço era surpreendente: uma deliciosa isca de peixe com molho de tomate apimentado, regada com uma cachaça dourada, perfumada e doce, combinação que me pareceu transcendental, ainda mais ao som de Paco de Lucia, que reverberava pela selva como num filme de Herzog.

Pode parecer estranho pensar em uma cachaça bebida tão longe e há tanto tempo, mas o Holandês passou a representar para mim uma marca da civilização. O refinamento vai com o homem onde ele estiver e produz as melhores coisas com o mais simples e nos lugares mais improváveis. Foi assim com aquele peixe apimentado e, acima de tudo, a cachaça do alambique local. “Foi envelhecida em tonéis de barro”, contou-se o capitão. “Não há nada melhor.”

Algum tempo atrás, os gourmets descobriram que a cachaça, o mais barato e popular destilado brasileiro, pode adquirir a condição de bebida para cavalheiros, prova da civilidade e da sua resistência, já que tem mais de 40 graus de teor alcoólico. Assim como o fondue nasceu pela mão dos mendigos, que juntavam os restos de queijo para forrar o estômago nos dias gelados da Suíça, boa parte da alta gastronomia nasceu de origens plebeias, melhorada com a técnica e o apuro de paladares sábios.

Gata borralheira, a nossa cachacinha ganhou seu momento de Cinderela com as versões premium espalhadas no mercado. Da conotação pejorativa, ela passou a ser sinal distintivo para bares e restaurantes que trazem rótulos especiais, além de alvo de diletantes, que vivem pesquisando, em busca da cachaça perfeita. 

“O interesse pelas cachaças premium reflete o aumento da qualidade da bebida. Os produtores passaram a ter mais cuidado e adotar processos de envelhecimento, o que melhora as características e o saber. Dentro da enorme diversidade de rótulos, encontrar a melhor cachaça é como buscar o Santo Graal. Até porque a noção de “melhor” é sempre pessoal, vinculadas as experiências sensoriais, como a minha passagem pelo Araguaia.

Estima-se que existam cerca de 4 mil rótulos de cachaça no Brasil, sem contar o produto doméstico. De longe o destilado mais popular do país, perde em volume de vendas somente para a cerveja. A cachaça é feita de duas maneiras. Uma é industrial, com a destilação em colunas de aço inox, que permite a produção em larga escala. Esse processo, semelhante ao de outras aguardentes, como a vodca, a tequila e o gim, está concentrada na mão de um punhado de empresas sediadas em São Paulo, Ceará e Pernambuco, que fazem 60% do mais de 1 bilhão de litros anuais de cachaça.

Mesmo as grandes indústrias procuram hoje produzir exemplares premium para conquistar clientes mais seletos. Com os processos de múltipla destilação, que tornam a cachaça mais pura, além do envelhecimento, o curtimento em tonéis de madeira e a aromatização, são produzidas industrialmente séries especiais da maior qualidade e diferentes sabores.

Os 40% restantes da produção vêm de 30 mil pequenos engenhos, que fazem a bebida tradicional – destilada em alambiques de cobre, como o uísque. No drinque ou puras, são ainda as melhores, sobretudo as envelhecidas.

Cerca da metade desses engenhos menores fica em Minas Gerais, o maior produtor de cachaça do país. Uma garrafa de Anísio Santiago, feita em salinas, no vale do Jequitinhonha, ao norte de Belo Horizonte, para muitos o epicentro dos melhores fabricantes do país, é vendida ao preço dos grandes uísques.

Também de Salinas vem a Lua Cheia, considerada uma das melhores pingas do Brasil, mais outras 35 marcas registradas e uma centena sem registro. De Araguari chega a GRM (Gosto Requintado Mundial), envelhecida em barris de carvalho, umburana e jequitibá rosa, lançada em 2002, em Paris, concebida como uma cachaça super-artesanal de exportação.

De São Tiago, perto de São João Del Rey, é a tradicional Espírito de Minas, encontrada em bons bares das grandes capitais. Em Minas, não há nenhum fabricante industrial de cachaça, o que se explica por origens históricas e culturais ligadas ao próprio espírito da bebida.

Minas Gerais e a cachaça artesanal caminham juntos desde o Ciclo do Ouro, iniciado em 1750, quando mais de 5 mil engenhos foram criados para produzir rapadura e aguardente de forma a atender os garimpeiros, que acorriam aos borbotões. Com a crescente frustração do garimpo de aluvião, eles desapareceram, mas os alambiques ficaram.

A essa particularidade juntaram-se os hábitos gastronômicos da sociedade mineira. A cachaça é uma parceira perfeita para a maioria dos pratos de sua cozinha tradicional. Difícil imaginar o tutu de feijão sem cachaça, tomada como deve ser, pura e em temperatura ambiente, num copo de vidro em miniatura. E muita gente não come uma boa feijoada sem uma caipirinha, servida em copo largo e raso, como o de uísque.

A caipirinha hoje é muito festejada no exterior, depois de aparecer em revistas domo a Wallpaper e a In Style. Sua difusão é a principal causa da multiplicação das exportações brasileiras de cachaça industrializada. A marca Sagatiba chegou a ser exportada para 13 países dos estados Unidos ao Taiti. Para abrir portas, foi testada pelo Beverage Testing Institute, o principal instituo de análise de bebidas alcoólicas dl mundo, nos Estados Unidos. No ranking do BTI, a Sagatiba ouro recebeu 91 pontos dos 100 possíveis, um a menos que a Sagatiba Velha, mistura de boas safras de cachaças de alambique, com dois anos de envelhecimento em tonéis de madeira.


Existem entre as cachaças verdadeiras raridades. A Sagatiba preciosa, edição limitada do lote de 1982, foi envelhecida 23 anos em barris de carvalho, descobertos em 2004 pelo fabricante – a casa Sagatiba, que funciona desde 1906 em Ribeirão preta. O conteúdo dos barris foi filtrado e acondicionado em garrafas exclusivas de vidro francês, produzidas pela Saverglass, em Paris. Recebeu 96 pontos do BTI, o que a colocou como a 26ª. Bebida destilada mais bem pontuada do planeta. Três garrafas da preciosa foram leiloadas na Christie’s, de Londres: primeira vez em que a nossa pinga apareceu na casa de leilões mais renomada do mundo.

A  história da cachaça vem do tempo em que os portugueses trouxeram a cana-de-açúcar na ilha da Madeira para o Brasil, a partir de 1532. Tecnicamente, há uma diferença entre a aguardente (designação geral de qualquer destilado) e a cachaça (proveniente da destilação do melaço resultante da produção de açúcar de cana. Devido a isso, a cachaça tem o sabor mais adocicado que o da vodca e outras aguardentes.

Em sua forma artesanal, a bebida é fermentada naturalmente pelo período de 18 a 36 horas. Depois, é volatilizada no alambique, escoando pelo capelo até a serpentina, onde volta à forma líquida. Descartam-se os 10% iniciais e finais da destilação, que contém impurezas, e aproveita-se o restante. A cachaça é incolor, mas pode ficar amarelada ou dourada com melados ou frações. O envelhecimento em barris também modifica buquê, corpo e sabor. Os de madeira fazem a bebida reagir, tornando-a mais macia, e pode mudar sua cor.

Os tonéis mais usados são o bálsamo, que produz uma bebida mais encorpada, e ais recentemente os de carvalho. A mineira Domina, voltada para o público feminino, como sugere o rótulo cor-de-rosa, envelhece em barris de jatobá, madeira absorvente de álcool e retentora de água, que a deixa mais suave.
Como produto do amor de quem faz, do cuidado especial inviável em artigos de larga escala, a cachaça estimula a produção para consumi próprio. Como resultado desse interesse elitizado, multiplicaram-se os bares especializados. No Rio de Janeiro, o Garapa Doida oferece centenas de rótulos. Assim como acontece com os vinhos, o restaurante Giuseppe Grill tem uma cara para o cliente escolher sua pinga. O Mangue Seco adotou o “cachacier”, os sommelier de cachaça.

É bom trazer a cachaça artesanal para a cidade grande, mas gostoso mesmo é pesquisa-la in loco. E cada um pode ter assim uma experiência mais interessante. A minha cachaça favorita é a envelhecida de Amélia, tradicional nas cidadezinhas da serra da Mantiqueira, na divisa entre São Paulo e Minas Gerais, e que pode ser encontrada no Bar do Marcelo, na praça central de Gonçalves, entre prateleiras de títulos brejeiros, como Pinissilina, Magnífica, caprichosa, Boazinha e Nega Fulô.

Deu vontade de viajar?  

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Por que todo homem deveria assistir Rush - o filme

Depois de passar a 300 km/h nos cinemas em 2013, está no ar no Net Now o filme Rush, do cineasta Ron Howard, o mesmo de alguns clássicos como "1984" (e algumas bobagens, como O Código Da Vinci e, lá atrás, Cocoon). Uma boa ocasião para ver ou rever com calma esta obra indispensável para todos os cavalheiros que se prezam, destinada a se tornar um clássico sobre a identidade masculina, como A Primeira Noite de Um Homem e Os Eleitos.

Rush é a história da rivalidade entre o austríaco Niki Lauda e o inglês James Hunt no já distante campeonato da Fórmula 1 de 1976, um dos mais emocionantes de todos os tempos. Filmado brilhantemente, traz de volta em cores hiperrealistas a época romântica do automobilismo. Podemos sentir o cheiro de gasolina e de pneu queimado nas suas cenas de ação. E mais, estremecer diante de um esporte do qual, como o próprio filme lembra, um em cada cinco participantes não saía vivo a cada temporada.

Porém, não são o charme do automobilismo, os efeitos especiais ou a fotografia que fazem de Rush um filme exemplar. Ele mostra, na realidade, um interessante duelo de estilos: duas maneiras de ser, tão diferentes quanto igualmente capazes de atingir um objetivo. De um lado, temos Lauda, cerebral e estóico, capaz de abrir terreno sozinho, a golpes de ousadia. De outro, Hunt: bon vivant, galanteador, que chega à Fórmula 1 pelas mãos de Lord Heskett, um britânico excêntrico que tomava champanhe na pista e o chamava afetadamente pelo apelido de Number 1.


Brühl como Lauda (à esq.) e Hemsworth (à dir.) como Hunt:
interpretação perfeita
Os personagens são maravilhosamente bem representados. Daniel Brühl está perfeito como Lauda: os dentes "de rato", o jeito ranheta, a mentalidade germânica que fará dele logo um vencedor serial. Hunt é interpretado por Chris Hemsworth, igualmente impecável no papel, tanto que esquecemos que ele também faz o super-herói Thor nos filmes da Disney/Marvel. Beberrão, mulherengo e indisciplinado, que gosta de andar com os pés no chão e não troca nenhuma noitada pelo treinamento, o Hunt de Hemsworth encarna o talento puro, ou a paixão, contra o engenho e a obstinação do seu oponente.

O acidente dramático de Lauda, que marca a temporada e a vida de ambos os pilotos, acrescenta emoção à disputa. Qual o melhor? No fundo, não se trata do melhor, e sim de escolhas que fazemos, de como queremos ser. Com quem você se identifica mais? Eis a questão. Apesar da rivalidade, que chega ao ponto mais perigoso que se pode chegar, ambos sabem o valor um do outro. E que, mesmo por vias tão diferentes, descobrimos que tanto um jeito como o outro pode funcionar.

Lauda e Hunt na vida real: dois estilos opostos, mas
igualmente grandes - e vencedores
Além do filme, não se pode deixar de recomendar um livro, publicado no Brasil com o selo Benvirá, que também conta a história da rivalidade entre Lauda e Hunt. O título em português é Corrida para a Glória. Seu autor, o jornalista britânico Tom Rubython, editor da Formula 1 Magazine e Business F1, escreveu também uma competente biografia de Ayrton Senna, além de outra do próprio Hunt.Lá, se pode saber com  detalhes tudo aquilo de que o filme não dá conta.

Dos dois astros daquela luta titânica, Hunt foi o primeiro a morrer. Lauda ainda está na Fórmula 1, hoje como diretor da Mercedes, escuderia atualmente considerada imbatível. Não deve ser por acaso, como mostra bem Rush. O tempo passou, mas Lauda não mudou tanto. Ainda tem no rosto as sequelas do acidente que tornou aquele ano de 1976 tão palpitante. E não deixou de ser um incansável perseguidor da vitória.


Rush: um filme que faz sentir o cheiro de gasolina. E tremer


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Degustação às cegas: o chileno "espanhol" e o grande "borgonha"

Há quinze anos, eu e mais nove camaradas fazemos reuniões toda terceira quinta-feira do mês para degustar vinhos; além de nos tornarmos grandes amigos, experimentamos nesse período algo como 1.500 rótulos diferentes. E, como há um certo ponto na vida em que temos de ter o poder de escolher o que fazer no horário comercial, começamos agora a nos reunir para encontros extras, como na tarde da sexta-feira passada, em que eu e mais três dos confrades nos sentamos para jogar conversa fora e aproveitar para fazer uma pequena degustação às cegas: cada um ficou de levar uma garrafa.

No grupo, estavam Faiçal, empresário do ramo de transportes, cuja adega é legendária entre os conhecedores; Sérgio, engenheiro, e Virgílio, médico. Todos degustadores experimentados; por isso, achei uma boa ocasião para levar o exemplar de Specialties que ganhei de presente num almoço com os executivos na vinícola Santa Carolina, na semana passada. Sabemos há muito tempo que o vinho chileno, como de resto os vinhos do Novo Mundo, tem hoje um padrão comparável aos dos melhores vinhos europeus, tanto na categoria dos vinhos de mesa quanto dos vinhos premium. Porém, há muito preconceito a dissipar. A degustação às cegas com meus amigos experts seria um bom teste.

Sexta-feira à tarde, pedimos mariscos para acompanhar o riesling alsaciano que Virgílio traria para começarmos; como o doutor chegou atrasado, comemos os mariscos com os tintos mesmo, e o alsaciano entrou como hors concours na degustação. Vieram três garrafas dos tintos envolvidas em papel alumínio; o quarto vinho, de Faiçal, a pedido dele, estava no decantador. Normalmente se usa esse truque para não identificar o pinot noir, facilmente denunciado numa degustação às cegas pelo formato bojudo da garrafa. Vir da decantação não disfarçou nada, mas isso não prejudicou o teste, pelo contrário.



A degustação: o riesling foi hors concours

Vinho 1: encorpado, bem amadeirado, potente. “Esse é espanhol”, Faiçal disparou, de saída. Olhou para mim. “É o que você trouxe?” “Não sei”, respondi. “Muito bom”, acrescentou ele.

Vinho 2: “outro espanhol”, disse Faiçal. “Ou português”, disse Sérgio. Também encorpado, porém um pouco mais aberto, frutado, que o primeiro. “Também excelente”, disse Faiçal. Virgílio concordou.

Vinho 3: um vinho equilibrado, harmônico, encorpado, prazeroso, com uma personalidade diferente dos anteriores. Francês, cravamos: borgonha. Virgílio ficou quieto. Grande vinho, mas concordamos que os anteriores não deviam nada a este em qualidade.

Vinho 4: por último, o vinho do decantador. Chamou a atenção, primeiro, pela cor. Já esmaecida, indicava o vinho já bem velho. O sabor remeteu imediatamente aos Borgonha. Concordamos todos que devia ser um Borgonha de safra bem antiga, talvez da década de 1970. Muito equilibrado, no ponto de beber, com todo o sabor do vinho bem curtido, embora conservasse ainda, conforme Faiçal observou, alguma acidez. “Ele ainda segura um tempo”.

Tínhamos ali, portanto, pelas impressões da degustação, dois vinhos espanhóis do mesmo nível e dois Borgonha. Bem, eu sabia que um dos “espanhóis” não era espanhol, mas não sabia dizer qual deles era o chileno. Unanimemente, o “Borgonha” do decânter foi escolhido o melhor da rodada. Palmas para Faiçal.

Descobrimos as garrafas.

O vinho 1 era um Pintia, safra 2006. Um dos melhores e mais disputados vinhos da Espanha, elaborado pela Vega Sicília na região de Toro. Ficou famoso por receber 95 pontos de Robert Parker na primeira safra. E recebeu a menção de melhor “Tinto com Madeira” de seu ano pelo Guía Gourmets.

O vinho 2 era o Specialties da Santa Carolina, que passou na degustação às cegas por vinho espanhol. “Muito bom”, disse Faiçal, surpreso. O vinho se torna mais curioso ainda porque é de uva Carignan, menos conhecida que a tradicional tempranillo dos grandes espanhóis. O resultado é um vinho com o mesmo peso, um pouco menos de madeira, e sutilmente mais frutado.

Confrontado com o Pintia, a maior diferença ficou mesmo no preço: enquanto um Pintia 2006 custa 441 reais na importadora (restavam dois exemplares na Mistral, quando liguei; havia safra 2008 por 369 reais), o Specialties está 97,99 reais a garrafa (importador: Casa Flora). Sinal de que a Santa Carolina, uma casa chilena que remonta a 1875, pode ser bem-sucedida na sua iniciativa de mostrar que faz também vinhos de alta qualidade, sem perder sua característica, que é a boa relação entre custo e benefício. Ou melhor: que a qualidade do vinho não se determina pelo preço. Tive que dar razão aos jovens empreendedores que hoje tocam a velha casa chilena.

Vinho 3: Gevrey-Chambertin, Domaine Louis Boillot & Fils, safra 2010. Sem sombra de dúvida um dos grandes borgonhas franceses. Esse, nós matamos a charada.

Vinho 4: a pegadinha do Faiçal. Um pinot noir, característica da Borgonha, como imaginamos, mas com o selo Garagem, do Rio Grande do Sul. O produtor, o Atelier Tormentas, não possui vinhas próprias. Porém, o alquimista Marco Danielle conseguiu fazer um vinho com sabor idêntico a um Borgonha envelhecido, sem que seja preciso esperar: a safra era de 2013. No caso, as uvas vieram do Vinhedo Serena.


O painel


A qualidade do vinho não nos surpreendeu tanto: já tínhamos bebido outro vinho do Atelier Tormentas a preço de vinho nacional com qualidade de vinho de Velho Mundo: o Fúlvia, que ficou célebre entre nós, confrades. Vários compraram caixas de Fúlvia depois de uma degustação em que ele levou vantagem sobre vários vinhos superestrelados. O problema é que, pela forma como produz, o Atelier Tormentas tem apenas séries limitadas de cada rótulo. No caso do Garagem, segundo informou Faiçal, não há mais nada para vender – restavam 80 garrafas, e ele comprou todas. Safado.

Conclusão, hoje não se sabe mais nada: o melhor vinho pode vir até mesmo do Brasil. Excluindo raridades como o Garagem, pode-se dizer que o Santa Carolina é um ótimo negócio, com qualidade de vinho europeu e preço convidativo; o Pintia e o Gevrey-Chambertin são ótimos, claro, porém mais difíceis de garimpar e propícios para quem gosta de olhar o rótulo ou colecionadores.

O almoço terminou com as risadas de sempre e uma rodada de chope, conforme uso do Faiçal – “para limpar a serpentina”. Eu preferi ficar de fora. Gosto dos eflúvios remanescentes do vinho. E ninguém reclama da minha cara de satisfação lá no "escritório".

Ficha técnica:
O campeão: infelizmente, esgotado.
Obrigado, faiçal!

Gevrey-Chambertin, Domaine Louis Boillot & Fils. 2010
Preço: 2000 reais a caixa com 6 (fora impostos). Na Fine & Rare Wines - Londres

Pintia 2006. Região: Toro. Vega Sicilia.
Importador: Mistral
Preço: 441,00

Specialties. Carignan. Valle de Cauquenes 2011
Santa Carolina
Importador: Casa Flora
Preço: 97,99

Pinot Noir Garagem. Vinhedo Serena, do Atelier Tormentas. 2013
Venda: indisponível.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Gênio indomável: a história de Shelby, legendário criador do Cobra e do Mustang envenenado

Ex-granjeiro, piloto de provas e pai de alguns dos carros mais célebres de todos os tempos, como o Cobra, o Mustang Shelby, o Ford GT500 e o Dodge Viper, a história de Carroll Shelby mostra como um homem pode ir além da própria lenda

Se há algum lugar no mundo onde se pode dizer seguramente que não existem mais homens como antigamente, esse lugar é o Texas, nos Estados Unidos. Nessa terra seca e inóspita, da qual se diz que a vida humana so passou a ser possível depois da invenção do ar condicionado, se fizeram os vaqueiros que lutaram contra os índios, empurraram para longe os mexicanos e implantaram suas fazendas extensivas de gado no ambiente agreste. É também o estado dos pioneiros que amealharam fortunas com o petróleo. Com chapelões, botas de couro e calças de índigo, eles são amantes da natureza, das mulheres e de carros. Não se fazem mais homens como no velho Texas, é verdade. Mas há alguns homens do velho Texas invulneráveis ao tempo. Um deles é Carroll Shelby.

Shelby e o Mustang clássico: transformador do
"carro da secretária" num ícone da esportividade
Falecido em 2012, Shelby é um dos nomes na galeria onde estão Bill Ford e Lee Iacocca. Como eles, recebeu o prêmio Executivo do Ano da Indústria Automobilística, concedido pela Automotive Industry Action Group (Aiag). Tornou-se personagem lendário no mundo do carro, como responsável pela criação de alguns dos maiores ícones sobre rodas de todos os tempos, como o Cobra, sensação dos anos 1960, o Dodge Viper, superesportivo da Chrysler, e o Ford GT 500, lançado em 2003. Além do célebre Shelby GT, a versão esportiva do Mustang, clássico dos anos 1960 relançado por Shelby em 2007 em consórcio com a Ford, a companhia onde deixou sua marca. “Siga suas paixões e dará tudo certo”, aconselhou Shelby ao receber o prêmio da Aiga em 2008, numa cerimônia em Detroit. “É uma receita tão antiga quanto verdadeira.”

No fim da vida, já com 87 anos, Shelby ainda dividia seu tempo entre administração de seus ranchos no Texas e Bel-Air Country Club, onde encontrava amigos como Barron Hilton, dono da cadeia de hotéis que leva seu nome, avô de Paris Hilton, a quem deserdou por mau comportamento. Desde 2003, Shelby voltara a trabalhar como consultor da Ford, ou “inspirador” dos carros esportivos da marca, especialmente no desenvolvimento do Ford GT 500. 
O Ford GT500: a montadora americana
fez frente à Ferrari, afinal
Sua maior contribuição nesse período, porém, foi ressuscitar o Shelby Mustang, que ganhou uma versão contemporânea à altura do velho mito. Como seu predecessor, o Shelby GT500, lançado em 2007, foi também uma versão de alta performance do Mustang. Um carro que poderia ter sido inventado hoje, mas tem um apelo especial para os saudosistas que o admiravam desde a infância, aquele que todo garoto queria ter quando crescer, com o poder de tornar legendário.

Sem nunca ter sido engenheiro ou designer, Shelby é um criador instintivo de carros. Sua formação vem da experiência pessoal e de um certo espírito indomável, que ele encarnou tão bem quanto o garanhão negro de crina longa, nome e símbolo do Mustang. Na verdade, sua ligação com os carros surgiu por acaso. Filho de um carteiro, ele nasceu em Leesburg, no Texas. Serviu na Segunda Guerra Mundial como instrutor de voo e piloto de testes da Força Aérea norte-americana. Ao deixar o serviço militar, virou granjeiro com dinheiro emprestado.

Dizimadas por uma doença aviária, suas galinhas o lançaram na miséria. Sem outro capital além de si próprio, decidiu se tornar piloto de corridas. Primeiro como amador e depois profissional, Shelby acumulou vitórias e uma ótima reputação. Correu nos anos 1950 pela Cad-Allard, Aston Martin e Maserati. Na equipe de Donald Healey, num Austin-Healy 100S, bateu 16 recordes de velocidade. Por dois anos consecutivos, em 1956 e 1957, foi considerado o piloto do ano pela revista Sports Illustrated, a principal publicação esportiva da época nos Estados Unidos.
Campeão do Riverside Grand Prix de 1960
Tornou-se um símbolo norte-americano nas pistas. Com a equipe da Aston Martin, venceu em 1959 pela primeira vez a prova das 24 Horas de Le Mans. Shelby disputou também provas de Fórmula 1 em 1958 e 1959, até fundar uma escola para pilotos e uma pequena empresa que adaptava modelos convencionais: a Shelby-American Company. Com ela, Shelby transformaria sua sensibilidade para carros esportivos no negócio mais apaixonante de sua vida.

Em sua loja, Carrol Shelby construiu o famoso Cobra, improvisando um motoro Ford V-8 num pequeno e leve conversível inglês chamado AC Ace. Com esse carro, a equipe Cobra Racing venceu em 1964 as 24 horas de Le Mans, corrida amis prestigiosa da época. Nesse enduro, no nordeste da França, Shelby conseguiu o inacreditável: bater a Ferrari, então considerada invencível por sua velocidade e resistência. O sucesso do modelo Cobra o levou a produzir outro carro adaptado, o Shelby GT 350, versão mais potente e agressiva do Mustang convencional, numa série limitada que marcou época.

 Com grade dianteira e exaustores laterais que pareciam rugir como um tigre quando acelerava, além da dupla faixa central pintada na carroceria, o GT 350 era produzido por Shelby em parceria com a West Custom Customs, uma loja de mecânica de automóveis que colocava em prática ideias conceituadas por ele. O expediente de mexer em carros já existentes valeu a Shelby o apelido de Bolly Sol Estes, um bandoleiro de colarinho branco que fraudou o governo texano num esquema de subsídios agrícolas na época. Ao ver o que ele podia fazer com seus carros, porém, a Ford decidiu torna-lo parceiro. Colocou-o para dentro do seu negócio como consultor na área de desenvolvimento de carros esportivos e de competição.

O Mustang Shelby 500 na sua primeira e clássica versão
(acima) e hoje: 
o "bandoleiro" vira sócio da grande indústria



Aventureiro, galanteador, com sotaque e jeito de vaqueiro, Shelby sabia transpor limites e ganhar simpatia. E não apenas nos negócios. Depois de se divorciar, em 1960, de Jeanne Fields, que lhe deu três filhos, antou uma ecumênica lista de conquistas, que incluiu a japonesa Akiko Kojima, vencedora do Miss Universo de 1959, e prosseguiu com mais cinco esposas oficiais. Uma delas foi a atriz Jan Harrison, que Shelby havia certa vez levado para casa  juntamente com o troféu de uma corrida que ela lhe entregara.

Ele ainda se casou com uma neo-zelandesa, uma quarta esposa da qual mal se lembrava o nome (“forma apenas alguns meses”, justificava), uma quinta que prometeu cuidar dele depois de seu transplante de coração e a sueca Lena Dahl, falecida em 1997 num acidente automobilístico. Sob anunciada determinação de jamais se casar novamente durou quatro meses. Sua última mulher foi Cleo, uma ex-modelo britânica que disputava provas de rali. Proibido de pilotar aviões desde o transplante, Shelby fez com que ela tirasse um brevê de piloto para poderem viajar juntos.

O ímpeto de Shelby se espalhou por outros negócios, como uma indústria de pimenta, mas o que traduziu melhor sua personalidade sempre foram os carros. A parceria com a Ford se tornou um marco, com forte influência no design e na engenharia de carros. A ideia por trás do sucesso dos carros de Shelby era a de que não bastava beleza num modelo esportivo: a performance devia ser fundamental. A isto, ele acrescentou a ideia de que um esportivo podia e deveria também estar ao alcance do bolso. Preocupava-se em fazer carros melhores a preços razoáveis. Daí criar esportivos a partir de carros de série.

Aproveitava as partes produzidas em escala, de modo a baratear o custo – berço dos hoje chamados carros “topo de linha”. Shelby industrializou o que faziam amantes de carro que envenenava, suas máquinas no fundo do quintal, utilizando carrocerias leves de modelos charmosos com motores de máxima potência.  Dinheiro sempre foi importante para ele – mais até do que carros potentes.

É famoso o encontro de Shelby em 1966, quando ainda era um piloto de provas, com Enzo Ferrari. Este o chamou para dirigir um de seus carros, como se o mero convite fosse um privilégio. Shelby perguntou: “qual é o salário?” Mesmo ofendido, Ferrari mencionou uma cifra. Shelby simplesmente disse: “Não dá”.  O estilo imperial da Ferrari e da sua equipe o irritavam. E a rivalidade entre as equipes cresceu ao longo dos anos.

Impossibilitado de correr por causa da angina, que já anunciava a gravidade de sua doença cardíaca, Shelby deu um jeito de não ficar longe das pistas. Em 1963, chegou a escrever uma autobiografia, ou bota-fora, com apenas 37 anos. Mudou para Los Angeles, onde os contatos para começar uma empresa eram mais fáceis, dada a sua reputação como piloto.  Para fazer o primeiro modelo Cobra, vendeu a ideia aos fabricantes do AC Ace de que poderia colocar os motores Ford e depois vendeu à própria Ford que poderia colocar seus motores na carroceria AC, desse que pudesse pagá-los a prazo.

Shelby com o Cobra no seu lançamento (acima)
e o carro, hoje: máquina legendária
 Precisava produzir pelo menos 100 carros para que o modelo fosse considerado de série. E assim competia em provas da categoria Gran Torino (GT). Mais uma vez, Shelby teve sorte. Na época, a Ford procurava construir uma imagem de confiabilidade e qualidade. Ele encontrou Lee Iacocca, então vice-presidente da companhia e lhe disse que precisava de 25 mil dólares para desenvolver um carro que capaz de superar o Corvette. Iacocca deu-lhe dinheiro, antes que Shelby fosse dar uma “mordida em mais alguém”.

Shelby pintou o Cobra de cores diferentes e inesperadas, para ser fotografado pelas revistas especializadas, de modo que se pudesse pensar que se tratava de mais do que um carro. Entre colecionadores, o bólido, com o desempenho de uma bala, do qual não foram feitos mais que mil exemplares, é negociado hoje a preços que giram em torno de meio milhão de dólares, feito uma verdadeira obra de arte. Shelby trabalhou duro na sua fábrica na Califórnia. Em pouco tempo, o Cobra já não perdia em provas para nenhum Corvette. A promessa de Shelby a Iacocca estava sendo cumprida.

Dali em diante, todos começaram a prestar mais atenção no que ele fazia. Em seguida, o Cobra bateria a até então invencível Ferrari GTO nos estados Unidos, em provas como as de Daytona e Sebring e mais tarde, na Europa. Enzo Ferrari tinha razões para temer o texano, que entre outras chateações lhe levou o piloto Phil Hill. Em 1964, a equipe de Shelby levantou a taça em Le Mans, com Bob Bondurant e Dan Gurney como pilotos. No ano seguinte, arrebatou o título mundial da classe GT.

A competição nas pistas refletia também uma luta nos negócios. Henry Ford II queria comprar a Ferrari, mas o teimoso comendador italiano não era fácil de convencer. O dono da maior montadora de carros do mundo na época decidiu, então, que, se não podia comprar a companhia italiana, faria dela poeira nas pistas. Assim, entregou a Shelby o projeto do Ford GT40, o carro com o qual pretendia bater o inimigo peninsular. Não poupou dinheiro. “Tínhamos que tomar cuidado com as ideias que Carroll queria colocar em pratica”, relembrou Jacque Passino, diretor esportivo da Ford nos anos 1980, que mantinha contato direto com Shelby. Para este, não havia limites que o carro não pudesse ultrapassar.

Em 1950, havia 30 GTO disputando a prova. A vantagem dos dois que curaram a linha de chegada em primeiro e segundo lugares para o resto dos concorrentes era tão grande que eles precisaram diminuir a velocidade para aparecer juntos levando a bandeirada. Carroll Shelby tinha então um grande capital: a simpatia do chefão.

Recebeu a incumbência de melhorar o Mustang, um carro de design primoroso, cujo desempenho não acompanhava a imagem de garanhão que transmitia. Os próprios funcionários da Ford gozavam o veículo, dizendo que era “o carro da secretária”. A companhia embarcava Mustang completos para a Shelby American e lá eram transformados no Shelby Mustang GT350. Shelby endurecia a suspensão, tirava os bancos traseiros, colocava entradas de ar de aspecto agressivo e dava mais potência ao motor. O melhor de tudo: enquanto um Cobra custava mais de 6 mil dólares, um Shelby Mustang podia fazer seu proprietário voar a um preço bem mais acessível: 4 mil dólares, ou cerca de 30 mil dólares em dinheiro atual.

Até Ford cortar seu investimento em competições, incerta sobre o relacionamento direto entre o desempenho das pistas e as vendas, Shelby aproveitou para ganhar muito dinheiro. Produziu uma versão mais sofisticada do Mustang, com melhor acabamento e motor ainda mais potente: o primeiro Shelby GT500. A base de suas ideias começou a parecer obsoleta nos anos 1980, quando a indústria norte-americana foi ameaçada pela competição dos carros japoneses, eficientes e baratos. Surgiram preocupações antes impensáveis, como controlar a emissão de poluentes para ser ecologicamente correto. “A performance deixou de ser tão importante”, lamentava ele. Foi assim por mais de 20 anos. Uma mudança de presidente na Ford e os investimentos que Shelby fazia nas suas fazendas no Texas acabaram por afastar parceiros que antes se davam tão bem.

Ele se envolveu em negócios em países africanos, como Angola, Botsuana e República centro-africana, onde assumiu o controle dos direitos de caça e entrou no comércio de diamantes. Com sua experiência na África, Shelby dizia não ter ganho muito dinheiro, mas se divertido um bocado. Nos Estados Unidos, plantou pimenta em suas terras no Texas para lançar em 1970 a Shelby Texas Chili Mix.

Tentou desenvolver carros de alta performance em parceria com a Oldsmobile, na qual ele planejava produzir o Series 1, modelo ao estilo do Cobra, com um potente motor da marca. Contudo, o Series 1 morreu na prancheta depois que o principal executivo da Oldsmobile, uma empresa do grupo General Motors, foi afastado da companhia. Só nessa operação, Shelby dizia ter pedido 10 milhões de dólares.

Lee Iacocca, então na sua célebre campanha para reerguer a Chrysler, o chamou para colaborar com os novos projetos. Shelby fez uma versão turbinada de um carro chamado Omni e esteve ao lado dos engenheiros do desenvolvimento do Dodge Viper, carro esportivo com o qual a companhia pretendia mostrar sua face mais ousada e futurista. Sua participação foi limitada pelo transplante, recebido graças a um aneurisma que derrubou em Las Vegas um homem de 34 anos sobre uma mesa de jogo.
Com o Viper: uma face mais ousada e futurista para a Chrysler
Com a recuperação da indústria norte-americana e o desenvolvimento da tecnologia de controle de poluição, houve o ressurgimento da produção de carros de alta performance. Em 2003, Shelby voltou à Ford como consultor do projeto do Ford GT, que resgatou do limbo o principal carro da montadora destinado à velocidade.

Lançado em 2007, o Shelby GT500 reacendeu o charme de sua primeira versão, em linhas estilizadas, numa junção ente o passado e o que havia de mais contemporâneo em design e tecnologia. Ao preço de 40 mil dólares no mercado americano, o GT 500 era um monstro com motor V8 de 5,4 litros e 500cv, na melhor tradição americana dos muscle cars. Mais leve devido ao emprego do alumínio na carroceria, esse Mustang top de linha veio praticamente como um carro de corrida, capas de alcançar 100 km/h em 4,5 segundos, partindo do zero. O controle eletrônico impedia o velocímetro de ir além de 250 km/h, mas podia alcançar 300 km/h.

Com a mesma potência do Ford GT, Corvette e Dodge Viper, era mais barato, cerca de 42 mil dólares: a fórmula perfeita segundo a filosofia de Shelby. Feito pela Ford em Michigan na versão cupê e conversível, o GT500 foi feito para não deixar escapar um detalhe aos amantes da marca: a cobra de prata incrustrada na grade dianteira, marca adicional que liga o carro ao seu patrono.
A cobra de prata, marca que Shelby colocou
à frente da própria marca da montadora

Carroll Shelby nunca foi de olhar para trás. Dono de um apartamento em Bel Air e dois ranchos no Texas, ficara do passado apenas com uma coleção de cinco pequenos aviões e 20 carros antigos – entre eles, o primeiro Cobra que fabricou. Poderia se considerar mais uma peça de sua coleção, mas gostava de dizer: “O melhor carro que fiz sempre será o próximo”. O velho texano poderia estar no panteão do mundo automobilístico já quando deixou as pistas em 1950, ao se afastar das pistas de competição, ou ainda quando seu coração falhou. Shelby, porém, foi um ótimo exemplo de como um homem sempre pode ir ainda além de sua própria lenda.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Ícones do estilo: os Murphy


Gerald e Sara: dinheiro e artes que marcaram época
e fizeram a fama da Riviera Francesa
 Junho de 1923, um domingo em Paris. Festa depois da estreia do balé Les Noces, de Stravinsky. Pablo Picasso e Fernand Léger, já dois astros da arte cubista, o escritor Tristan Tzara e centenas de outros convidados da nata da sociedade francesa são recebidos ao som do piano no banquete montado sobre uma barcaça no rio Sena. Há uma grande disputa pelas atenções. Com as floriculturas fechadas em dia santo, as mesas são decoradas com carrinhos, bonecas, bichos de pelúcia, palhaços e outros brinquedos.

Entusiasmado, Picasso transforma a decoração em escultura – uma pirâmide cujo topo é formado por uma vaquinha malhada na ponta da escada de um carro de bombeiros. Depois de anunciar que faltaria à celebração por motivo de doença, o cineasta Jean Cocteau irrompe, vestido de capitão, com uma lanterna nas mãos e aos gritos: “Estamos afundando!” Depois de se divertir trocando de lugar as placas com os nomes dos convidados sobre as mesas, Igor Stravinsky, o homenageado, salta dentro de uma coroa de louros gigante como um cão amestrado.

Mais que ninguém, porém, brilham os anfitriões: Gerald e Sara Murphy, um casal de americanos atirados à mais absoluta dissipação, que depois da festa faria as malas rumo a Cap D’Antibes, onde os esperava o compositor americano Cole Porter, conhecido de Gerald desde seus tempos de Yale. Porter alugara lá o Château de La Garoupe – o dono do Hôtel du Cap, Antoine Sella, que fechava o estabelecimento entre maio e setembro, abrira-lhes uma exceção, franqueando os quartos para a estadia na companhia de Picasso, sua mulher, Olga, e o filho Paulo, então com dois anos de idade.

Lá os Murphy receberiam convidados, como a escritora Gertrude Stein (a rainha da chamada “Geração Perdida”), promoveriam piqueniques na praia, passeios de barco e festas à fantasia. Antes de partir para Veneza com os Porter, hóspedes do Palazzo Barbaro, os Murphy deixariam instituído o hábito do veraneio e a atmosfera chic que tornaria famosa a Riviera Francesa. E o sobrenome do casal como símbolo de estilo e de uma forma de joie de vivre em torno do dinheiro e da arte.

Com a alegria ao redor das garrafas de champanhe sobre a mesa, dos jogos de tênis com roupa impecavelmente branca e do veraneio na praia, que Gerald frequentava com sua camiseta listrada e bengala, e Sara de maiô adornado com pérolas, flutuava no ar o perfume que se desprende do mais ideal dos paraísos.

A vida era uma festa ao redor dos Murphy. Para os americanos ricos,
os anos 20 foram feitos para viajar e festejar noite e dia

Os anos 1920 eram um tempo de inocência, de crença numa prosperidade sem limites, impulsionada pelo fim da Primeira Guerra e a ignorância dos males que levariam ao crack de 1929 – quando foram à bancarrota não somente os milionários da época, como a ilusão de toda uma era. Talvez por isso Gerald e Sara tenham brilhado tanto e continuem a atrair tanto a atenção, sobretudo dos americanos, fascinados por sua vida, retratada em uma exposição itinerante, com obras de artistas como Picasso, Juan Gris e Georges Braque, algumas delas inspiradas na convivência com o casal.

Nessa exposição, há retratos femininos de Picasso usando Sara como modelo, aquarelas dedicadas aos Murphy por Léger, desenhos de Jean Cocteau e Francis Picabia e fotografias do casal feitas por Man Ray. Além de cartas, objetos pessoais e filmes caseiros em que, entre outros, aparecem os escritores John dos Passos e Ernest Hemingway, comensais da Villa America, propriedade adquirida na Riviera quando o Hôtel du Cap já não parecia o bastante.

Os Murphy ainda representam a versão mais refinada do “sonho americano” em tempos de absoluta prosperidade. Permanecem como ícone da riqueza como desfrute, consagrada na arte produzida ao seu redor. Em especial, como inspiradores do romance Suave É a Noite, de F. Scott Fitzgerald, que assim como Herman Melville e Henry James, forma a tríade dos autores clássicos americanos.

Fitzgerald foi companheiro de tertúlias dos Murphy na Riviera, num momento em que o escritor ainda procurava manter um padrão de vida semelhante ao deles, na companhia de Zelda – a aristocrática, extravagante e perturbada mulher que ajudaria o romancista a mergulhar em dívidas, no alcoolismo e nos malefícios do cigarro, antes de morrer de um ataque cardíaco aos 44 anos. Utilizou o estilo de vida do casal para enriquecer de detalhes a obra que selou seu papel como aguçado cronista daquela América próspera – revelada também por ele no seu lado mais hipócrita. 

Perpassa a obra a sensação de que toda aquela riqueza desbundante e o espírito livre escondiam em si mesmos os genes da ruína, não apenas para os ricos dessa era de ouro, como de todo o país. Scott Fitzgerald foi ao mesmo tempo o grande celebrante e satirista do sonho que virou pesadelo”, escreveu o crítico literário Harold Bloom em seu livro Gênio, sobre os maiores mestres das ideias de todos os tempos. Ele, a obra de Fitzgerald já levantava a velha pergunta: quanto tempo pode durar essa bolha de alegria que se repete nos tempos de fartura.

Hôtel du Cap, na Riviera, ond eo casal recebia amigos
para cruzeiros em seus iates no Mediterrâneo




O romance mais famoso de Fitzgerald, O Grande Gatsby, celebrado nos Estados Unidos, é definidor do caráter de uma Nação, mostra como a América da Lei seca produzia seus milionários, levando um garoto das ruas de Nova York ao sonho americano pela via do crime organizado. A apresentação da máfia como um negócio qualquer, capaz de empurrar ao sucesso um “executivo” que compra suas camisas na Inglaterra, termina de forma trágica.

Suave É a Noite, porém, é a obra em que Fitzgerald melhor capta não somente o espírito americano, como a própria alma da riqueza – uma análise que deve muito à observação dos Murphy. Não por outra razão, esse é o romance que ele mesmo considerava sua obra-prima.

No livro, Dick River é um jovem e brilhante psiquiatra que interrompe sua carreira para se casar com Nicole Warren, uma herdeira bela, rica e mentalmente perturbada, que ao seu lado encontra certo equilíbrio, embora um tanto instável. A história é vista pelos olhos de uma aspirante a estrela de Hollywood, que durante uma temporada na Riviera Francesa se apaixona não só pelo protagonista como pela imagem de perfeição produzida pelo casal.

Para sua surpresa, ela os reencontrará anos mais tarde em situação completamente diferente. Recuperada, Nicole continua a levar sua vida de distanciamento da realidade num carrossel dourado. Descartado, Dick vê seu brilho se apagar num obscuro consultório no interior dos Estados Unidos, fadado a, depois de ter vivido num círculo de sonhos, ser enviado de volta ao seu lugar.

Muito mais um retrato da própria vida de Fitzgerald com Zelda, financeiramente arruinada e internada em diversos sanatórios mentais, Suave É a Noite contém muito da beleza desesperada do estilo de vida dos Murphy. Do casal, o escritor tirou alguns detalhes marcantes, como os colares de pérolas, a casa na Riviera e a aura que a cercava, bem como a exarcebação da vida social, a ligação com a arte e uma certa despretensão que embalava de maneira elegante o hedonismo mais desbragado.

Fitzgerald extraiu dos Murphy também observações menos edificantes, como uma certa frivolidade, oculta sob uma aparente perfeição, tão sutil quanto chocante. É essa frivolidade o substrato da história que, ao ser publicada em 1935, escandalizou Sara, a ponto de se julgar traída e devassada, dada a variedade de referências diretas à sua vida privada.

Na vida real, os Murphy não fizeram muito para ganhar dinheiro. O pai de Gerald foi esperto o suficiente para perceber que os automóveis tomariam o lugar das carroças no final do Século XIX e transformou sua selaria numa fábrica de malas de viagem, bolsas e congêneres, a Mark Cross Inc. Teve dinheiro de sobra para enviar o herdeiro a Yale e sustenta-lo por um período na Europa, onde Gerald vivia à larga, enquanto procurava engrenar como artista plástico. 

Sara teve menos sorte apenas que seu pai, Francis Wiborg, um fabricante de tinta para escrever que se casou com Adeline Sherman, oriunda de uma família de políticos e oficiais laureados na Guerra Civil americana – o mais perto que se podia chegar da aristocracia nos Estados Unidos, com direito à mesma vida nababesca dos agraciados com títulos, terras e brasões.

O escritor F. Scott Fitzgerad e a esposa Zelda na vida real
e uma cena do filme Suave é a Noite, baseado no estilo de vida
e personagens do universo inpsirador dos Murphy

Ela desabrochou em Dunes, mansão dentro de uma propriedade de 600 acres pertencente à família em East Hampton, mas bem cedo foi apresentada à aristocracia de verdade. Levada pela mãe, conheceu a corte do rei Eduardo VII em Londres, onde adquiriu muito do seu estilo, inspirada na duquesa Violet Ruthland – célebre na Inglaterra pós-vitoriana por seus dotes como artista plástica e a liberdade com que variava os seus amantes.

Além do comportamento que precedia o feminismo, Sara tomaria da duquesa Violet o gosto por pérolas, usadas sempre e de todos os jeitos, especialmente nos colares que caíam sobre os longos decotes nas costas, imortalizados em desenhos de Picasso.

Em Londres, ela participou da intensa vida social da mãe, celebrizada como anfitriã do Baile dos Vegetais, no qual os convidados da mais fina flor recebiam produtos hortifrutigranjeiros como brinde na entrada do hotel Ritz – a filha da duquesa de Ruthland, Alice Cooper, saiu-se a estrela da noite ao vencer a “corrida das batatas”. 

Mal falada nos Estados Unidos, depois de retornar ao país com uma carga ilegal de joias na bagagem, declaradamente para uso próprio, Adeline voltou à Inglaterra em busca de um bom partido para a filha. O projeto foi interrompido por um giro pelo Oriente e o posterior reencontro de sara com Gerald, que ela conhecia há quase uma década, desde uma festa nos Hamptons, quando tinha 21 anos e ele 16.

Ambos se consideravam “almas gêmeas”, sonhavam ser artistas e viver em liberdade absoluta, um cenário que ganhou rápida oposição familiar de ambos os lados. Para se afastar do mau humor doméstico, depois de um casamento retratado na capa da revista Town & Country, o casal deixou Nova York em 1921 com destino a Londres e a intenção de se radicar me Paris, transformando em realidade o projeto juvenil de fazer da vida “uma obra de arte”. Além de se manter distante da censura dos pais, Gerald teria na Europa novamente o ambiente ideal para pintar e, diferente de seu país, onde reinava a proibição do álcool, exercitar-se como conhecedor do cherry e do champanhe.

Inspirado em Georges Braque, André Derain e Pablo Picasso, cujas obras conheceu junto com os autores nas galerias parisienses da Rive Gauche, Gerald chegou a pintar telas e expor, mas nunca vingou nas artes plásticas – por sorte, não dependia de dinheiro. No entanto, atraiu os artistas para seu círculo pessoal, com grande ajuda de Sara, cuja beleza e modos encantavam a todos – especialmente Picasso, mulherengo incorrigível. O pinto espanhol os convidou para ir à sua casa na Rue de La Boëtie e logo os transformou em amigos próximos.

Faziam parte desse círculo a irmã de Sara, Hoytie, lésbica assumida, esnobe e agressiva, sobretudo quando alcoolizada, e Fernad Léger, eleito por Gerald como seu guru nas artes. Seu trabalho alinhava-se com o primeiro período modernista na geometria absoluta das formas e na temática própria do período da industrialização. Entre outras coisas, Gerald retratou mecanismos de um relógio e o convés de um navio que o levara à França, sua tela mais conhecida, com a qual participou do salão de artes plásticas de Paris em 1924 ao lado dos astros da época. Suas obras, porém, ficaram mais conhecidas pelo tamanho, sugestivo da ambição do autor, que pela sua qualidade.

Depois de cinco anos sem o esperado reconhecimento, exceto pelo gripo seleto de amigos que o chamavam meio zombeteiramente de “o único pintor americano em Paris”, Gerald abandonou a carreira e as veleidades artísticas, decretando que o mundo estava “cheio demais” de candidatos a gênio como ele.

Dedicou-se, então, ao que mais gostava: o incentivo às artes e a vida social. Recebia os amigos na Riviera, hospedado com Sara no Hôtel du Cap, enquanto aguardavam a reforma do chalé La Garoupe, adquirido pelos Murphy em 1923. Os verões famosos passaram a incluir cruzeiros pelo mediterrâneo a bordo de algum dos iates da família. Discretamente, Geraldo iniciou-se em relacionamentos cujo impulso tentou abafar durante toda a vida. Seu guarda-roupa recheado de fantasias, entre as quais de caubói, gondoleiro veneziano e caçador incluía trajes que sugeriam certa tendência à homossexualidade.

Ele chegou a se aproximar de um jardineiro de Boston, Richard Cowan, seu companheiro frequente de vela, que mais trade, em 1939, se suicidou sem motivo aparente. Gerald certamente discutia sobre sexo com Fitzgerald, o que acaba por transparecer em Suave É a Noite. Inspirado em Gerald só menos que em seu criador, o personagem principal do romance é definido no texto como alguém cujo gosto por “tiras e fivelas” indicava uma personalidade “masoquista”.

Nada disso, porém, parece ter atrapalhado o relacionamento de Gerald e Sara, dentro do espírito de elegante discrição com o qual eles mantinham a fachada de um casamento mais que perfeito, tão bem retratada em Suave É a Noite. Ela fazia vista grossa à aproximação dele com o amigo Cole Porter e por seu lado, embora fiel, dava pano para o flerte com artistas ao seu redor. Teria sido por recusar os seus encantos a Picasso que este, como um gesto de vingança bem ao seu estilo, tria retratado Gerald no quadro As Flautas de pã, um clássico da pintura modernista. Picasso personifica as antigas tradições em um flautista dionisíaco, representado por ele mesmo, que toca diante das “perdições do mundo” – uma figura em que Gerald detectava seus próprios traços. Tal referência nunca foi explícita, mas, desconfiado da semelhança, ele se afastou, esfriando a relação entre ambos.

Em Paris, numa sociedade aparentemente democrática, mas que via com certo preconceito os americanos, tão endinheirados quanto desprovidos de cultura – a própria efígie do novo-riquismo -, Gerald e Sara eram algo diferente. Devotados ás artes, tão educados e encantadores quanto pródigos, integravam-se ao ambiente festivo da época com a mais magnética combinação. Entre coquetéis e passeios pela Riviera, Gerald desfilava o seu charme extravagante, que incluía posar nu para fotografias, enquanto Sara exercia o fascínio da mulher espirituosa, calorosa e capaz de falar livremente sobre tudo – uma combinação fatal, ainda mais embalada pela beleza física.

A tela As Flautas de Pã, em que Picasso retrata Gerald.
À dir. Picasso em primeiro e Gerald em segundo plano

Entre seus ardorosos fãs, estava Fitzgerald, que alugava uma villa em Cap’Antibes, mas passava a maior parte do tempo com o casal.

Em 1925, o chalé dos Murphy em La Garoupe ficou pronto. Batizado de Villa America, a casa ganhou em tamanho. Tinha tijolos negros no chão e paredes brancas, a exemplo do apartamento do casal em Paris, no bairro de Montparnasse, onde havia uma única obra de arte: uma grande bola de metal girando num pedestal ao lado do piano de ébano.

A propriedade dos Murphy na Riviera possuía um terraço nos jardins que sugeria um pedaço do paraíso e um estúdio no antigo estábulo. Uma babá, um cozinheiro, um motorista e outros criados davam conta do serviço, que incluía a manutenção dos chalés, erguidos para acomodar os convidados. Além de Picasso e dos velhos amigos, eles recebiam celebridades do mundo intelectual, como os escritores Ernest Hemingway, Robert Benchley, John dos Passos e Dorothy Parker.

Comunista engajado, dos Passos conseguiu passar na Villa America no máximo quatro dias – tomou a decisão de ir embora, com receio de se render ao capitalismo. “Era fomo viver no céu”, escreveu. “Eu tinha de voltar para a terra.”

Depois do crack de 1929, a vida dos Murphy se tornou mais difícil. Com grandes perdas nas bolsas de valores, eles tiveram de apertar o cinto. A Villa America foi alugada e eles voltaram aos Estados Unidos, onde Gerald assumiu o comando da empresa da família, que dirigiria até 1956. À depressão econômica, sobreveio a tragédia da morte sucessiva de dois de seus filhos. Baoth sucumbiu à meningite, em 1935, e Patrick à tuberculosa, em 1937, depois de uma longa batalha contra a doença. Os Murphy se retiraram da vida social, embora continuassem ligados às artes e aos amigos.

Gerald teve na maturidade a vida da qual procurara escapar, despachando em um escritório e fazendo seu almoço regularmente no mesmo lugar, enquanto Sara se dedicava ao trabalho voluntário com crianças. Jamais falavam do passado nem sobre os filhos perdidos, como se a antiga vida tivesse se espatifado feito um lustre de cristal. Terminaram ocupando um chalé em East Hampton, no que restara da antiga propriedade da família de Sara. Lá, Gerald faleceu em 1964, aos 76 anos, e Sara em 1975, aos 82. Seu casamento durara 60 anos.

Sara e Gerald nos Hamptons, onde se conheceram numa festa, dez anos
antes do reencontro, do casamento e da mudança para Paris

As sete obras que restaram da curta produção de Gerald se tornaram peças de museu não apenas por sua raridade, como pela história que fez a sua mística. Em 1971, surgiu o primeiro livro efetivamente biográfico dos Murphy, sugestivamente intitulado Viver Bem é a Melhor Vingança, escrito por um colaborador da revista New Yorker, Calvin Tomkins. Em 1998, despontou outra biografia, Todos Eram Tão Jovens, de Amanda Vaill.

Os revisionistas dos Murphy ressaltam sua influência na cultura americana pela sua proximidade com a vanguarda das ideias e das artes que traziam para a América ao retornar de suas temporadas europeias. Loas são entoadas sobre a influência do casal na moda e nas artes. Sabe-se hoje que Coco Chanel inspirou-se no comportamento libertário dos Murphy. Le Corbusier foi um admirador da reforma na Villa America. Há quem tente atribuir a Gerald o papel do pai da pop art.

Os Murphy também teriam financiado Hemingway, sobretudo no início de carreira, no período parisiense, em que ele chegou a passar fome, comi o próprio escritor relata em Paris é Uma Festa, livro de memórias da juventude, publicado postumamente. Talvez ferido pela recepção no mercado de sua melhor obra inicial, escrita no mesmo estilo de Suave É a Noite e claramente com a intenção de superar o amigo e eternamente rival Fitzgerald, Hemingway escreveu sobre os Murphy: “Sob o efeito do charme desses milionários, eu era fiel e estúpido como um cachorro de caça. Quando eles diziam ‘está ótimo, Ernest’, referindo-se a O Sol Também se Levanta, eu balanço o rabo, em vez de pensar... Se esses bastardos gostam disso, o que há de errado com o livro?”

Como se vê, a poética “vida transformada em arte” é como o fogo: fascinante, mas também pode queimar.