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Gerald e Sara: dinheiro e artes que marcaram época
e fizeram a fama da Riviera Francesa |
Junho de 1923, um domingo em Paris. Festa depois da estreia
do balé Les Noces, de Stravinsky. Pablo Picasso e Fernand Léger, já dois astros
da arte cubista, o escritor Tristan Tzara e centenas de outros convidados da
nata da sociedade francesa são recebidos ao som do piano no banquete montado
sobre uma barcaça no rio Sena. Há uma grande disputa pelas atenções. Com as
floriculturas fechadas em dia santo, as mesas são decoradas com carrinhos,
bonecas, bichos de pelúcia, palhaços e outros brinquedos.
Entusiasmado, Picasso
transforma a decoração em escultura – uma pirâmide cujo topo é formado por uma
vaquinha malhada na ponta da escada de um carro de bombeiros. Depois de
anunciar que faltaria à celebração por motivo de doença, o cineasta Jean
Cocteau irrompe, vestido de capitão, com uma lanterna nas mãos e aos gritos:
“Estamos afundando!” Depois de se divertir trocando de lugar as placas com os
nomes dos convidados sobre as mesas, Igor Stravinsky, o homenageado, salta
dentro de uma coroa de louros gigante como um cão amestrado.
Mais que ninguém, porém, brilham os anfitriões: Gerald e Sara
Murphy, um casal de americanos atirados à mais absoluta dissipação, que depois
da festa faria as malas rumo a Cap D’Antibes, onde os esperava o compositor
americano Cole Porter, conhecido de Gerald desde seus tempos de Yale. Porter
alugara lá o Château de La Garoupe – o dono do Hôtel du Cap, Antoine Sella, que
fechava o estabelecimento entre maio e setembro, abrira-lhes uma exceção,
franqueando os quartos para a estadia na companhia de Picasso, sua mulher,
Olga, e o filho Paulo, então com dois anos de idade.
Lá os Murphy receberiam convidados, como a escritora Gertrude
Stein (a rainha da chamada “Geração Perdida”), promoveriam piqueniques na
praia, passeios de barco e festas à fantasia. Antes de partir para Veneza com
os Porter, hóspedes do Palazzo Barbaro, os Murphy deixariam instituído o hábito
do veraneio e a atmosfera chic que tornaria famosa a Riviera Francesa. E o
sobrenome do casal como símbolo de estilo e de uma forma de joie de vivre em
torno do dinheiro e da arte.
Com a alegria ao redor das garrafas de champanhe sobre a
mesa, dos jogos de tênis com roupa impecavelmente branca e do veraneio na
praia, que Gerald frequentava com sua camiseta listrada e bengala, e Sara de
maiô adornado com pérolas, flutuava no ar o perfume que se desprende do mais
ideal dos paraísos.
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A vida era uma festa ao redor dos Murphy. Para os americanos ricos,
os anos 20 foram feitos para viajar e festejar noite e dia |
Os anos 1920 eram um tempo de inocência, de crença numa
prosperidade sem limites, impulsionada pelo fim da Primeira Guerra e a
ignorância dos males que levariam ao crack de 1929 – quando foram à bancarrota
não somente os milionários da época, como a ilusão de toda uma era. Talvez por
isso Gerald e Sara tenham brilhado tanto e continuem a atrair tanto a atenção,
sobretudo dos americanos, fascinados por sua vida, retratada em uma exposição
itinerante, com obras de artistas como Picasso, Juan Gris e Georges Braque,
algumas delas inspiradas na convivência com o casal.
Nessa exposição, há retratos femininos de Picasso usando Sara
como modelo, aquarelas dedicadas aos Murphy por Léger, desenhos de Jean Cocteau
e Francis Picabia e fotografias do casal feitas por Man Ray. Além de cartas,
objetos pessoais e filmes caseiros em que, entre outros, aparecem os escritores
John dos Passos e Ernest Hemingway, comensais da Villa America, propriedade
adquirida na Riviera quando o Hôtel du Cap já não parecia o bastante.
Os Murphy ainda representam a versão mais refinada do “sonho
americano” em tempos de absoluta prosperidade. Permanecem como ícone da riqueza
como desfrute, consagrada na arte produzida ao seu redor. Em especial, como
inspiradores do romance Suave É a Noite, de F. Scott Fitzgerald, que assim como
Herman Melville e Henry James, forma a tríade dos autores clássicos americanos.
Fitzgerald foi companheiro de tertúlias dos Murphy na
Riviera, num momento em que o escritor ainda procurava manter um padrão de vida
semelhante ao deles, na companhia de Zelda – a aristocrática, extravagante e
perturbada mulher que ajudaria o romancista a mergulhar em dívidas, no alcoolismo
e nos malefícios do cigarro, antes de morrer de um ataque cardíaco aos 44 anos.
Utilizou o estilo de vida do casal para enriquecer de detalhes a obra que selou
seu papel como aguçado cronista daquela América próspera – revelada também por
ele no seu lado mais hipócrita.
Perpassa a obra a sensação de que toda aquela
riqueza desbundante e o espírito livre escondiam em si mesmos os genes da
ruína, não apenas para os ricos dessa era de ouro, como de todo o país. Scott Fitzgerald
foi ao mesmo tempo o grande celebrante e satirista do sonho que virou
pesadelo”, escreveu o crítico literário Harold Bloom em seu livro Gênio, sobre
os maiores mestres das ideias de todos os tempos. Ele, a obra de Fitzgerald já
levantava a velha pergunta: quanto tempo pode durar essa bolha de alegria que
se repete nos tempos de fartura.
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Hôtel du Cap, na Riviera, ond eo casal recebia amigos
para cruzeiros em seus iates no Mediterrâneo |
O romance mais famoso de Fitzgerald, O Grande Gatsby,
celebrado nos Estados Unidos, é definidor do caráter de uma Nação, mostra como
a América da Lei seca produzia seus milionários, levando um garoto das ruas de
Nova York ao sonho americano pela via do crime organizado. A apresentação da
máfia como um negócio qualquer, capaz de empurrar ao sucesso um “executivo” que
compra suas camisas na Inglaterra, termina de forma trágica.
Suave É a Noite, porém, é a obra em que Fitzgerald melhor
capta não somente o espírito americano, como a própria alma da riqueza – uma
análise que deve muito à observação dos Murphy. Não por outra razão, esse é o
romance que ele mesmo considerava sua obra-prima.
No livro, Dick River é um jovem e brilhante psiquiatra que
interrompe sua carreira para se casar com Nicole Warren, uma herdeira bela,
rica e mentalmente perturbada, que ao seu lado encontra certo equilíbrio,
embora um tanto instável. A história é vista pelos olhos de uma aspirante a
estrela de Hollywood, que durante uma temporada na Riviera Francesa se apaixona
não só pelo protagonista como pela imagem de perfeição produzida pelo casal.
Para sua surpresa, ela os reencontrará anos mais tarde em
situação completamente diferente. Recuperada, Nicole continua a levar sua vida
de distanciamento da realidade num carrossel dourado. Descartado, Dick vê seu
brilho se apagar num obscuro consultório no interior dos Estados Unidos, fadado
a, depois de ter vivido num círculo de sonhos, ser enviado de volta ao seu
lugar.
Muito mais um retrato da própria vida de Fitzgerald com
Zelda, financeiramente arruinada e internada em diversos sanatórios mentais,
Suave É a Noite contém muito da beleza desesperada do estilo de vida dos
Murphy. Do casal, o escritor tirou alguns detalhes marcantes, como os colares
de pérolas, a casa na Riviera e a aura que a cercava, bem como a exarcebação da
vida social, a ligação com a arte e uma certa despretensão que embalava de
maneira elegante o hedonismo mais desbragado.
Fitzgerald extraiu dos Murphy também observações menos
edificantes, como uma certa frivolidade, oculta sob uma aparente perfeição, tão
sutil quanto chocante. É essa frivolidade o substrato da história que, ao ser
publicada em 1935, escandalizou Sara, a ponto de se julgar traída e devassada,
dada a variedade de referências diretas à sua vida privada.
Na vida real, os Murphy não fizeram muito para ganhar
dinheiro. O pai de Gerald foi esperto o suficiente para perceber que os
automóveis tomariam o lugar das carroças no final do Século XIX e transformou
sua selaria numa fábrica de malas de viagem, bolsas e congêneres, a Mark Cross
Inc. Teve dinheiro de sobra para enviar o herdeiro a Yale e sustenta-lo por um
período na Europa, onde Gerald vivia à larga, enquanto procurava engrenar como
artista plástico.
Sara teve menos sorte apenas que seu pai, Francis Wiborg, um
fabricante de tinta para escrever que se casou com Adeline Sherman, oriunda de
uma família de políticos e oficiais laureados na Guerra Civil americana – o
mais perto que se podia chegar da aristocracia nos Estados Unidos, com direito
à mesma vida nababesca dos agraciados com títulos, terras e brasões.
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O escritor F. Scott Fitzgerad e a esposa Zelda na vida real
e uma cena do filme Suave é a Noite, baseado no estilo de vida
e personagens do universo inpsirador dos Murphy |
Ela desabrochou em Dunes, mansão dentro de uma propriedade de
600 acres pertencente à família em East Hampton, mas bem cedo foi apresentada à
aristocracia de verdade. Levada pela mãe, conheceu a corte do rei Eduardo VII
em Londres, onde adquiriu muito do seu estilo, inspirada na duquesa Violet
Ruthland – célebre na Inglaterra pós-vitoriana por seus dotes como artista
plástica e a liberdade com que variava os seus amantes.
Além do comportamento que precedia o feminismo, Sara tomaria
da duquesa Violet o gosto por pérolas, usadas sempre e de todos os jeitos,
especialmente nos colares que caíam sobre os longos decotes nas costas, imortalizados
em desenhos de Picasso.
Em Londres, ela participou da intensa vida social da mãe,
celebrizada como anfitriã do Baile dos Vegetais, no qual os convidados da mais
fina flor recebiam produtos hortifrutigranjeiros como brinde na entrada do
hotel Ritz – a filha da duquesa de Ruthland, Alice Cooper, saiu-se a estrela da
noite ao vencer a “corrida das batatas”.
Mal falada nos Estados Unidos, depois
de retornar ao país com uma carga ilegal de joias na bagagem, declaradamente
para uso próprio, Adeline voltou à Inglaterra em busca de um bom partido para a
filha. O projeto foi interrompido por um giro pelo Oriente e o posterior
reencontro de sara com Gerald, que ela conhecia há quase uma década, desde uma
festa nos Hamptons, quando tinha 21 anos e ele 16.
Ambos se consideravam “almas gêmeas”, sonhavam ser artistas e
viver em liberdade absoluta, um cenário que ganhou rápida oposição familiar de
ambos os lados. Para se afastar do mau humor doméstico, depois de um casamento
retratado na capa da revista Town & Country, o casal deixou Nova York em
1921 com destino a Londres e a intenção de se radicar me Paris, transformando
em realidade o projeto juvenil de fazer da vida “uma obra de arte”. Além de se
manter distante da censura dos pais, Gerald teria na Europa novamente o
ambiente ideal para pintar e, diferente de seu país, onde reinava a proibição
do álcool, exercitar-se como conhecedor do cherry e do champanhe.
Inspirado em Georges Braque, André Derain e Pablo Picasso,
cujas obras conheceu junto com os autores nas galerias parisienses da Rive
Gauche, Gerald chegou a pintar telas e expor, mas nunca vingou nas artes
plásticas – por sorte, não dependia de dinheiro. No entanto, atraiu os artistas
para seu círculo pessoal, com grande ajuda de Sara, cuja beleza e modos
encantavam a todos – especialmente Picasso, mulherengo incorrigível. O pinto
espanhol os convidou para ir à sua casa na Rue de La Boëtie e logo os
transformou em amigos próximos.
Faziam parte desse círculo a irmã de Sara, Hoytie, lésbica
assumida, esnobe e agressiva, sobretudo quando alcoolizada, e Fernad Léger,
eleito por Gerald como seu guru nas artes. Seu trabalho alinhava-se com o
primeiro período modernista na geometria absoluta das formas e na temática
própria do período da industrialização. Entre outras coisas, Gerald retratou
mecanismos de um relógio e o convés de um navio que o levara à França, sua tela
mais conhecida, com a qual participou do salão de artes plásticas de Paris em
1924 ao lado dos astros da época. Suas obras, porém, ficaram mais conhecidas
pelo tamanho, sugestivo da ambição do autor, que pela sua qualidade.
Depois de cinco anos sem o esperado reconhecimento, exceto
pelo gripo seleto de amigos que o chamavam meio zombeteiramente de “o único
pintor americano em Paris”, Gerald abandonou a carreira e as veleidades
artísticas, decretando que o mundo estava “cheio demais” de candidatos a gênio
como ele.
Dedicou-se, então, ao que mais gostava: o incentivo às artes
e a vida social. Recebia os amigos na Riviera, hospedado com Sara no Hôtel du
Cap, enquanto aguardavam a reforma do chalé La Garoupe, adquirido pelos Murphy
em 1923. Os verões famosos passaram a incluir cruzeiros pelo mediterrâneo a
bordo de algum dos iates da família. Discretamente, Geraldo iniciou-se em
relacionamentos cujo impulso tentou abafar durante toda a vida. Seu
guarda-roupa recheado de fantasias, entre as quais de caubói, gondoleiro
veneziano e caçador incluía trajes que sugeriam certa tendência à
homossexualidade.
Ele chegou a se aproximar de um jardineiro de Boston, Richard
Cowan, seu companheiro frequente de vela, que mais trade, em 1939, se suicidou
sem motivo aparente. Gerald certamente discutia sobre sexo com Fitzgerald, o
que acaba por transparecer em Suave É a Noite. Inspirado em Gerald só menos que
em seu criador, o personagem principal do romance é definido no texto como
alguém cujo gosto por “tiras e fivelas” indicava uma personalidade
“masoquista”.
Nada disso, porém, parece ter atrapalhado o relacionamento de
Gerald e Sara, dentro do espírito de elegante discrição com o qual eles
mantinham a fachada de um casamento mais que perfeito, tão bem retratada em
Suave É a Noite. Ela fazia vista grossa à aproximação dele com o amigo Cole
Porter e por seu lado, embora fiel, dava pano para o flerte com artistas ao seu
redor. Teria sido por recusar os seus encantos a Picasso que este, como um
gesto de vingança bem ao seu estilo, tria retratado Gerald no quadro As Flautas
de pã, um clássico da pintura modernista. Picasso personifica as antigas tradições
em um flautista dionisíaco, representado por ele mesmo, que toca diante das
“perdições do mundo” – uma figura em que Gerald detectava seus próprios traços.
Tal referência nunca foi explícita, mas, desconfiado da semelhança, ele se
afastou, esfriando a relação entre ambos.
Em Paris, numa sociedade aparentemente democrática, mas que
via com certo preconceito os americanos, tão endinheirados quanto desprovidos
de cultura – a própria efígie do novo-riquismo -, Gerald e Sara eram algo
diferente. Devotados ás artes, tão educados e encantadores quanto pródigos,
integravam-se ao ambiente festivo da época com a mais magnética combinação.
Entre coquetéis e passeios pela Riviera, Gerald desfilava o seu charme
extravagante, que incluía posar nu para fotografias, enquanto Sara exercia o
fascínio da mulher espirituosa, calorosa e capaz de falar livremente sobre tudo
– uma combinação fatal, ainda mais embalada pela beleza física.
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A tela As Flautas de Pã, em que Picasso retrata Gerald.
À dir. Picasso em primeiro e Gerald em segundo plano |
Entre seus ardorosos fãs, estava Fitzgerald, que alugava uma
villa em Cap’Antibes, mas passava a maior parte do tempo com o casal.
Em 1925, o chalé dos Murphy em La Garoupe ficou pronto. Batizado
de Villa America, a casa ganhou em tamanho. Tinha tijolos negros no chão e
paredes brancas, a exemplo do apartamento do casal em Paris, no bairro de
Montparnasse, onde havia uma única obra de arte: uma grande bola de metal
girando num pedestal ao lado do piano de ébano.
A propriedade dos Murphy na Riviera possuía um terraço nos
jardins que sugeria um pedaço do paraíso e um estúdio no antigo estábulo. Uma
babá, um cozinheiro, um motorista e outros criados davam conta do serviço, que
incluía a manutenção dos chalés, erguidos para acomodar os convidados. Além de
Picasso e dos velhos amigos, eles recebiam celebridades do mundo intelectual,
como os escritores Ernest Hemingway, Robert Benchley, John dos Passos e Dorothy
Parker.
Comunista engajado, dos Passos conseguiu passar na Villa
America no máximo quatro dias – tomou a decisão de ir embora, com receio de se
render ao capitalismo. “Era fomo viver no céu”, escreveu. “Eu tinha de voltar
para a terra.”
Depois do crack de 1929, a vida dos Murphy se tornou mais
difícil. Com grandes perdas nas bolsas de valores, eles tiveram de apertar o
cinto. A Villa America foi alugada e eles voltaram aos Estados Unidos, onde
Gerald assumiu o comando da empresa da família, que dirigiria até 1956. À
depressão econômica, sobreveio a tragédia da morte sucessiva de dois de seus
filhos. Baoth sucumbiu à meningite, em 1935, e Patrick à tuberculosa, em 1937,
depois de uma longa batalha contra a doença. Os Murphy se retiraram da vida
social, embora continuassem ligados às artes e aos amigos.
Gerald teve na maturidade a vida da qual procurara escapar,
despachando em um escritório e fazendo seu almoço regularmente no mesmo lugar,
enquanto Sara se dedicava ao trabalho voluntário com crianças. Jamais falavam
do passado nem sobre os filhos perdidos, como se a antiga vida tivesse se
espatifado feito um lustre de cristal. Terminaram ocupando um chalé em East
Hampton, no que restara da antiga propriedade da família de Sara. Lá, Gerald
faleceu em 1964, aos 76 anos, e Sara em 1975, aos 82. Seu casamento durara 60
anos.
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Sara e Gerald nos Hamptons, onde se conheceram numa festa, dez anos
antes do reencontro, do casamento e da mudança para Paris |
As sete obras que restaram da curta produção de Gerald se
tornaram peças de museu não apenas por sua raridade, como pela história que fez
a sua mística. Em 1971, surgiu o primeiro livro efetivamente biográfico dos
Murphy, sugestivamente intitulado Viver Bem é a Melhor Vingança, escrito por um
colaborador da revista New Yorker, Calvin Tomkins. Em 1998, despontou outra
biografia, Todos Eram Tão Jovens, de Amanda Vaill.
Os revisionistas dos Murphy ressaltam sua influência na
cultura americana pela sua proximidade com a vanguarda das ideias e das artes
que traziam para a América ao retornar de suas temporadas europeias. Loas são
entoadas sobre a influência do casal na moda e nas artes. Sabe-se hoje que Coco
Chanel inspirou-se no comportamento libertário dos Murphy. Le Corbusier foi um
admirador da reforma na Villa America. Há quem tente atribuir a Gerald o papel
do pai da pop art.
Os Murphy também teriam financiado Hemingway, sobretudo no
início de carreira, no período parisiense, em que ele chegou a passar fome,
comi o próprio escritor relata em Paris é Uma Festa, livro de memórias da juventude,
publicado postumamente. Talvez ferido pela recepção no mercado de sua melhor
obra inicial, escrita no mesmo estilo de Suave É a Noite e claramente com a
intenção de superar o amigo e eternamente rival Fitzgerald, Hemingway escreveu
sobre os Murphy: “Sob o efeito do charme desses milionários, eu era fiel e
estúpido como um cachorro de caça. Quando eles diziam ‘está ótimo, Ernest’,
referindo-se a O Sol Também se Levanta, eu balanço o rabo, em vez de pensar...
Se esses bastardos gostam disso, o que há de errado com o livro?”
Como
se vê, a poética “vida transformada em arte” é como o fogo: fascinante, mas
também pode queimar.