A bebida certa para comemorar grandes vitórias. E levantar de certas derrotas.
Localizado em Cognac – mais precisamente na área da Grande Champagne – o castelo de Le Grollet é uma construção com janelas simétricas diante de colinas onde se estendem vinhedos centenários. Nesse lugar, construído por um dos conselheiros militares do rei Francisco I, encontram-se as adegas da Rémy Martin, empresa de origem familiar, fundada em 1724 e um dos maiores orgulhos da França. Diante do castelo, repousa o segredo do conhaque dos conhaques. Lá, prestando profunda atenção nos 13 mil hectares cultivados de Le Grollet, ouve-se um único som. O som da paciência.
Existem
poucas coisas no mundo produzidas ao longo de muito tempo para proporcionar
apenas um instante de prazer. Esse é o caso do conhaque Louis XIII, o principal
produto da casa, elaborado com a combinação de 1,2 mil destilados de uva que
descansam de 40 a 100 anos em velhos barris nas adegas escuras de Le Grollet. “Misturar
tantas aguardentes é um genuíno ato de criação”, definiu Vincent Géré, diretor
de conhaques da Rémy Martin.
Esse processo, que depende essencialmente do ser
humano, é de certa maneira também sobre-humano. O mestre que destilou as
primeiras uvas para produzir as eaus-de-vie guardadas nos barris não viveu para
ver o resultado de seu trabalho, assim como o profissional de hoje, que
aproveita o resultado de seus antecessores, não verá a bebida que está fazendo
nascer. Em 100 anos, o mundo muda muito. Porém, em Le Grollet, a paciência
continua a imperar.
O
resultado dessa história de trabalho e tradição é um produto para poucos e
bons. Ao preço de 2 mil dólares a garrafa no mercado americano, ou 5 mil reais
nas importadoras brasileiras, o Louis XIII é o conhaque mais caro e requintado
do conglomerado Rémy Cointreau, resultado da fusão em 1990 da Rémy Martin com
outra tradicional empresa – os fabricantes do licor Cointreau. O Louis XIII da série
Black Pearl é ainda mais exclusivo. Provém da aguardente centenária envelhecida
em um único barril, um dos mais antigos da reserva pessoal da família Rémy
Martin. Lançado em 786 exemplares numerados, ao preço de 8 mil dólares a
garrafa nos Estados Unidos, o Black Pearl é celebrado como uma verdadeira
obra-prima.
Feito
por longo tempo para ser consumido em um momento fugaz, o Louis XIII se tornou
o conhaque preferido dos grandes estadistas – ou todos aqueles capazes de
compreender que em um instante também se pode mudar um século. Entre seus
adeptos mais famosos, figuram o presidente americano Theodore Roosevelt, que
lançou os Estados Unidos no caminho de ser uma potência mundial, e sir Winston
Churchill, primeiro-ministro britânico, que o adotou, assim como o V da
vitória, para celebrar grandes ocasiões desde que saiu duplamente vencedor na
Segunda Guerra Mundial e nas eleições gerais de 1951.Na lista
dos que escolheram o Louis XIII como sua bebida predileta, entram ainda gênios
que mudaram a história da arte e do comportamento, como o cineasta Charles
Chaplin, o artista plástico Pablo Picasso e a estilista Coco Chanel.
O
Louis XIII frequentou sempre os melhores lugares - como o bar Lalique Pullman, vagão decorado em 1929 pelo gênio da
Art Déco, René Lalique, no Orient Express, o trem mais luxuoso do mundo.
Fez parte do cardápio inaugural do salão restaurante da primeira classe do
Normandie, famoso navio cruzeiro dos anos 1930. Foi servido em Versalhes em
1959, quando o palácio recebeu Elizabeth II, rainha da Inglaterra, e para os
passageiros do Concorde, quando o jato supersônico era a nova maravilha da
civilização, em 1976.
É
claro que os tempos são outros. Versalhes hoje é um palco atropelado pelos
turistas de massa. Não há mais transatlânticos requintados
como o Normandie. O Concorde foi aposentado. A lista de celebridades que se
declaram adeptas do Louis XIII nos dias de hoje traz do ator Tom Cruise ao
rapper americano P. Diddy. Pode ser que você não conheça nenhum rapper e há
poucos indícios de que os políticos de nosso tempo virão a mudar o mundo na direção
de algo melhor. Ninguém, no entanto, pode impedir que todos desfrutem da
sensação afrodisíaca do poder diante de um cálice de Louis XIII, especialmente
depois de um grande jantar, em companhia de um charuto cubano.
O
conhaque tem uma origem cercada por lendas. Uma delas o associa a Napoleão
Bonaparte, que teria levado consigo diversos barris de Courvoisier ao ser
exilado na ilha de Santa Helena, em 1815, onde morreu seis anos depois. A bebida
resulta de um lento e complexo processo de produção, que lhe dá maior valor. Destilada duas vezes do vinho de uvas brancas, a
aguardente é envelhecida em tonéis de carvalho. Após o envelhecimento, o
mestre-de-adega mistura o conteúdo de tonéis e idades diferentes. A personalidade da bebida surge da somatória de aromas e sabores. Por sua formação, guarda uma grande complexidade.
O Louis
XIII foi criado em 1874 por Paul-Emile Rémy Martin, bisneto do fundador da Maison
Rémy Martin, que na época já contava com 150 anos de tradição. Imaginado como
um símbolo da art de vivre francesa, é envelhecido em tierçons, barris de
carvalho mais finos que os comuns, originários da região de Limousin, nas
montanhas Auvergne, que desprendem mais aroma e sabor. Por essa razão,
proporcionam uma troca mais intensa e enriquecedora da bebida com a madeira e o
ar.
O Louis XIII sugere frutas, flores, mel, figo e especiarias, como o
gengibre, o sândalo e a noz-moscada. Sua cor de mogno profundo vem diretamente
da influência do carvalho. O nome Louis XIII é uma homenagem ao monarca que
ocupava o trono francês à época em que os primeiros Martin ocuparam terras em
Cognac. O rei foi também um dos defensores da produção da bebida na região da
qual tomou o nome, muito disputada pelos produtores de vinho e do próprio
champanhe.
Como
quase tudo numa casa tão antiga, a garrafa do Louis XIII também tem uma
história. O exemplar que se tornou modelo foi encontrado em 1850 por um camponês no lugar da batalha de
Jarnac, onde em 1569 os católicos liderados pelo duque de Anjou combateram os
protestantes sob a bandeira do príncipe de Condé. Ninguém sabe a quem pertenceu
a garrafa, comprada em 1850 pelos Rémy Martin como um objeto de coleção.
Adotada para o Louis XIII, cada exemplar é produzido graças ao trabalho de 24 artesãos, do molde do
vidro, feito à mão pela Baccarat, ao banho de ouro líquido do pescoço e à
gravação da sua característica flor-de-lis. Para o selo Black Pearl, a Baccarat
desenvolveu um modelo especial com um cristal que produz um efeito similar ao
das pérolas negras: conforme a luz e o ângulo de visão, a garrafa vai de um
preto fosco a um brilho prateado.
A
região de Cognac é hoje dividida em seis sub-regiões, entre as quais a Grande
Champagne – que, apesar do nome, é bem menor que a Petite Champagne. Anos de
experiência mostraram que ali se encontravam as condições ideais para a produção
de conhaque: a altitude, o clima e sobretudo o solo bastante calcário, responsável
pela produção das uvas mais finas. Nos anos 1930, o empresário André Ranaud,
depois de comprar parte da empresa familiar, decidiu concentrar a produção do
conhaque Rémy Martin na região e iniciou a parceria com a Baccarat para a produção
de garrafas.
Hoje
o Louis XIII se espalhou pelo mundo sem perder sua imagem de exclusividade.
Globalizado como tudo, pode ser bebido em hotéis de lugares muito diferentes, mas
que guardam em comum o calibre de seus frequentadores, como o Plaza Athénée, de
Paris, o Raffles, de Cingapura, o Lanesborough, em Londres, e o Ritz de Osaka.
Como
queria o rei Luís XIII, a área de produção de conhaque é hoje protegida por lei
– a maneira mais simples de impedir que o negócio seja substituído por outro com
possíveis vantagens econômicas. Preserva-se assim um pedaço importante da
tradição do país.
Aí
está uma lição que se aprende nos vinhedos de Cognac: os que cultivam o passado
protegem o futuro. Os tempos irão mudar. O mundo será diferente daqui a 100
anos, mas, graças à paciência dos franceses, grandes conhaques surgirão. E,
quem sabe, à espera dos homens que farão a Humanidade andar para a frente a
passos largos e importantes mais uma vez.
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