segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A bebida dos estadistas

A bebida certa para comemorar grandes vitórias. E levantar de certas derrotas.

Localizado em Cognac – mais precisamente na área da Grande Champagne – o castelo de Le Grollet é uma construção com janelas simétricas diante de colinas onde se estendem vinhedos centenários. Nesse lugar, construído por um dos conselheiros militares do rei Francisco I, encontram-se as adegas da Rémy Martin, empresa de origem familiar, fundada em 1724 e um dos maiores orgulhos da França. Diante do castelo, repousa o segredo do conhaque dos conhaques. Lá, prestando profunda atenção nos 13 mil hectares cultivados de Le Grollet, ouve-se um único som. O som da paciência.

Existem poucas coisas no mundo produzidas ao longo de muito tempo para proporcionar apenas um instante de prazer. Esse é o caso do conhaque Louis XIII, o principal produto da casa, elaborado com a combinação de 1,2 mil destilados de uva que descansam de 40 a 100 anos em velhos barris nas adegas escuras de Le Grollet. “Misturar tantas aguardentes é um genuíno ato de criação”, definiu Vincent Géré, diretor de conhaques da Rémy Martin. 


Esse processo, que depende essencialmente do ser humano, é de certa maneira também sobre-humano. O mestre que destilou as primeiras uvas para produzir as eaus-de-vie guardadas nos barris não viveu para ver o resultado de seu trabalho, assim como o profissional de hoje, que aproveita o resultado de seus antecessores, não verá a bebida que está fazendo nascer. Em 100 anos, o mundo muda muito. Porém, em Le Grollet, a paciência continua a imperar.

O resultado dessa história de trabalho e tradição é um produto para poucos e bons. Ao preço de 2 mil dólares a garrafa no mercado americano, ou 5 mil reais nas importadoras brasileiras, o Louis XIII é o conhaque mais caro e requintado do conglomerado Rémy Cointreau, resultado da fusão em 1990 da Rémy Martin com outra tradicional empresa – os fabricantes do licor Cointreau. O Louis XIII da série Black Pearl é ainda mais exclusivo. Provém da aguardente centenária envelhecida em um único barril, um dos mais antigos da reserva pessoal da família Rémy Martin. Lançado em 786 exemplares numerados, ao preço de 8 mil dólares a garrafa nos Estados Unidos, o Black Pearl é celebrado como uma verdadeira obra-prima.

Feito por longo tempo para ser consumido em um momento fugaz, o Louis XIII se tornou o conhaque preferido dos grandes estadistas – ou todos aqueles capazes de compreender que em um instante também se pode mudar um século. Entre seus adeptos mais famosos, figuram o presidente americano Theodore Roosevelt, que lançou os Estados Unidos no caminho de ser uma potência mundial, e sir Winston Churchill, primeiro-ministro britânico, que o adotou, assim como o V da vitória, para celebrar grandes ocasiões desde que saiu duplamente vencedor na Segunda Guerra Mundial e nas eleições gerais de 1951.Na lista dos que escolheram o Louis XIII como sua bebida predileta, entram ainda gênios que mudaram a história da arte e do comportamento, como o cineasta Charles Chaplin, o artista plástico Pablo Picasso e a estilista Coco Chanel.

O Louis XIII frequentou sempre os melhores lugares - como o bar Lalique Pullman, vagão decorado em 1929 pelo gênio da Art Déco, René Lalique, no Orient Express, o trem mais luxuoso do mundo. Fez parte do cardápio inaugural do salão restaurante da primeira classe do Normandie, famoso navio cruzeiro dos anos 1930. Foi servido em Versalhes em 1959, quando o palácio recebeu Elizabeth II, rainha da Inglaterra, e para os passageiros do Concorde, quando o jato supersônico era a nova maravilha da civilização, em 1976.

É claro que os tempos são outros. Versalhes hoje é um palco atropelado pelos turistas de massa. Não há mais transatlânticos requintados como o Normandie. O Concorde foi aposentado. A lista de celebridades que se declaram adeptas do Louis XIII nos dias de hoje traz do ator Tom Cruise ao rapper americano P. Diddy. Pode ser que você não conheça nenhum rapper e há poucos indícios de que os políticos de nosso tempo virão a mudar o mundo na direção de algo melhor. Ninguém, no entanto, pode impedir que todos desfrutem da sensação afrodisíaca do poder diante de um cálice de Louis XIII, especialmente depois de um grande jantar, em companhia de um charuto cubano.

O conhaque tem uma origem cercada por lendas. Uma delas o associa a Napoleão Bonaparte, que teria levado consigo diversos barris de Courvoisier ao ser exilado na ilha de Santa Helena, em 1815, onde morreu seis anos depois. A bebida resulta de um lento e complexo processo de produção, que lhe dá maior valor. Destilada duas vezes do vinho de uvas brancas, a aguardente é envelhecida em tonéis de carvalho. Após o envelhecimento, o mestre-de-adega mistura o conteúdo de tonéis e idades diferentes. A personalidade da bebida surge da somatória de aromas e sabores. Por sua formação, guarda uma grande complexidade.

O Louis XIII foi criado em 1874 por Paul-Emile Rémy Martin, bisneto do fundador da Maison Rémy Martin, que na época já contava com 150 anos de tradição. Imaginado como um símbolo da art de vivre francesa, é envelhecido em tierçons, barris de carvalho mais finos que os comuns, originários da região de Limousin, nas montanhas Auvergne, que desprendem mais aroma e sabor. Por essa razão, proporcionam uma troca mais intensa e enriquecedora da bebida com a madeira e o ar. 

O Louis XIII sugere frutas, flores, mel, figo e especiarias, como o gengibre, o sândalo e a noz-moscada. Sua cor de mogno profundo vem diretamente da influência do carvalho. O nome Louis XIII é uma homenagem ao monarca que ocupava o trono francês à época em que os primeiros Martin ocuparam terras em Cognac. O rei foi também um dos defensores da produção da bebida na região da qual tomou o nome, muito disputada pelos produtores de vinho e do próprio champanhe.

Como quase tudo numa casa tão antiga, a garrafa do Louis XIII também tem uma história. O exemplar que se tornou modelo foi encontrado em 1850 por um camponês no lugar da batalha de Jarnac, onde em 1569 os católicos liderados pelo duque de Anjou combateram os protestantes sob a bandeira do príncipe de Condé. Ninguém sabe a quem pertenceu a garrafa, comprada em 1850 pelos Rémy Martin como um objeto de coleção. 

Adotada para o Louis XIII, cada exemplar é produzido graças ao trabalho de 24 artesãos, do molde do vidro, feito à mão pela Baccarat, ao banho de ouro líquido do pescoço e à gravação da sua característica flor-de-lis. Para o selo Black Pearl, a Baccarat desenvolveu um modelo especial com um cristal que produz um efeito similar ao das pérolas negras: conforme a luz e o ângulo de visão, a garrafa vai de um preto fosco a um brilho prateado.

A região de Cognac é hoje dividida em seis sub-regiões, entre as quais a Grande Champagne – que, apesar do nome, é bem menor que a Petite Champagne. Anos de experiência mostraram que ali se encontravam as condições ideais para a produção de conhaque: a altitude, o clima e sobretudo o solo bastante calcário, responsável pela produção das uvas mais finas. Nos anos 1930, o empresário André Ranaud, depois de comprar parte da empresa familiar, decidiu concentrar a produção do conhaque Rémy Martin na região e iniciou a parceria com a Baccarat para a produção de garrafas.

Hoje o Louis XIII se espalhou pelo mundo sem perder sua imagem de exclusividade. Globalizado como tudo, pode ser bebido em hotéis de lugares muito diferentes, mas que guardam em comum o calibre de seus frequentadores, como o Plaza Athénée, de Paris, o Raffles, de Cingapura, o Lanesborough, em Londres, e o Ritz de Osaka.

Como queria o rei Luís XIII, a área de produção de conhaque é hoje protegida por lei – a maneira mais simples de impedir que o negócio seja substituído por outro com possíveis vantagens econômicas. Preserva-se assim um pedaço importante da tradição do país.

Aí está uma lição que se aprende nos vinhedos de Cognac: os que cultivam o passado protegem o futuro. Os tempos irão mudar. O mundo será diferente daqui a 100 anos, mas, graças à paciência dos franceses, grandes conhaques surgirão. E, quem sabe, à espera dos homens que farão a Humanidade andar para a frente a passos largos e importantes mais uma vez.

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