sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Hamilton, Senna e do que são feitos os mitos


No domingo dia 27 de setembro, grande prêmio do Japão, o inglês Lewis Hamilton, que começou a carreira usando um capacete amarelo em homenagem ao seu ídolo, conquistou o mesmo número de vitórias na Fórmula 1 que Ayrton Senna: 41.

Não que o número de Senna seja algum recorde. Vettel tem esse número de vitórias. O heptacampeão Schumacher teve quase o dobro. A importância é que Hamilton se espelha em Senna e persegue o mito. Certamente é o piloto que mais se parece com Senna, até porque estudou seu estlo de pilotagem a fundo e declaradamente se inspirou nele. Houve quem fizesse comparações. Ele é um grande piloto. Caminha para igualar outro feito de Senna, o tricampeonato, este ano. Faltou-lhe uma corrida para igualar um recorde de Senna, este sim, não batido até hoje: oito pole positions seguidas. Certamente Hamilton estará entre os grandes pilotos da história. Porém, não é como Senna. Uma coisa é ser um grande piloto. E um campeão. Outra coisa é se tornar mito.

Hamilton conquistou 41 vitórias com uma corrida a mais que Senna. Porém, as marcas não são comparáveis. Ele começou sua carreira na Fórmula 1 já na McLaren, uma equipe grande, em condições de ganhar corridas e o campeonato. Senna começou sua carreira na antes irrelevante Toleman. Conseguiu destacar-se justamente por obter resultados muito acima do que o seu equipamento permitia.

Depois, foi para a Lotus, onde conseguiu também uma proeza: vencer com um carro que era apenas médio. Senna não começou por cima. Teve que lutar muito para conseguir um carro de ponta. E ainda assim teve que seguir lutando. Hamilton não tem um adversário à altura em sua própria equipe: Rosberg está longe. Senna teve Prost.

Muita gente lembra da ultrapassagem de Nelson Piquet na curva sobre Senna, uma das mais célebres da Fórmula 1. A realidade é que Piquet andava de Williams, então um carro imbatível. Extraordinário é que Senna estivesse na frente, competindo com um carro bem inferior. Isso é o que Piquet nunca aceitou de Senna, e a razão pela qual tenta até hoje diminuí-lo, uma atitude não muito honrosa para um tricampeão. Piquet foi um grande piloto. Mas não conseguiu nem de longe a admiração que teve seu desafeto, cujo final trágico quase o santificou.

Piquet não está sozinho. Com seus sete títulos, Schumacher é o maior campeão de todos os tempos. Mas nunca se comparou a Senna. Schumacher se beneficiou da boa vontade dos empresários da Fórmula 1, que precisavam fabricar um ídolo incontestável, para levantar o esporte depois do terrível impacto da morte de Senna. Schumacher era um bom piloto, rápido e calculista, mas trapaceava para ganhar e era beneficiado pela equipe em que estava, onde não tinha concorrentes, e pelo sistema. Quando voltou a correr, sem esses privilégios, foi batido sistematicamente pelo companheiro de equipe, Rosberg, o mesmo que hoje come a poeira de Hamilton. Nunca foi admirado como Senna. E nem o destino trágico fora das pistas o transformou em mito.

Senna não teve adversários somente dentro das pistas. Teve contra si o stablishment: a administração viciada da Fórmula 1, que manobrava contra ele.  Foi também um símbolo nacional, por vencer e elevar a auto-estima de todo um país, numa época em que o Brasil procurava praticamente se levantar do mundo dos mortos. Foi um ídolo popular, que movimentava multidões. E sua imagem de lutador talentoso e obstinado criou milhões de fãs no resto do mundo.

O que fez Hamilton ter Senna como ídolo foi o que moveu a todos: uma paixão indestrutível, sua capacidade de perseguir um sonho a qualquer preço, incluindo a própria vida, e dividir esse sonho com os fãs.

Cenas que marcaram a memória de uma geração: Senna carregando a bandeira brasileira na volta da vitória, no dia em que o Brasil perdeu uma Copa do Mundo. Senna com o Toleman na chuva, voando em Mônaco, se aproximando de Prost, a bandeirada antes da hora, para que não ultrapassasse o francês. Senna agitando os braços para os mecânicos empurrarem seu carro e relargando para recuperar terreno e vencer de forma incrível no Japão, enquanto Prost ficava na brita - outra vitória que lhe foi tirada pelos cartolas.

Senna não desistia; mesmo quando acontecia algo errado, quase como milagre, sabíamos que ele estaria lá, de volta, lutando: sempre era possível esperar dele o impossível. Por isso, torcíamos para chover. Na situação mais difícil, os carros se equiparavam, prevalecia o talento, e ele aparecia como um super herói no meio do spray. Histórias fantásticas se contavam, ainda antes da Fórmula 1, como a do dia em que ao fim da corrida reclamou que tivera de guiar sem freios numa corrida em Silverstone. Os mecânicos riram. Ao colocar a mão nas rodas, porém, o espanto: as pastilhas estavam frias. Assim surgem as lendas.

Cheguei a conhecê-lo pessoalmente: não conversamos muito, mas pude apertar sua mão. No dia em que morreu, como tanta gente, chorei; não me juntei à multidão que saiu às ruas no seu funeral, mas fui, tempos depois, a uma homenagem no Memorial da América Latina, um dia ao mesmo tempo de tristeza e de festa. Ainda sofro com sua perda. Ao ver o video de Hamilton no carro onde ele brilhou, é difícil não entender como é genuína a emoção do piloto inglês. "É um dos melhores dias da minha vida", disse. Era sempre essa a sensação para nós, quando Senna estava naquele lugar.

PS: Hamilton escreveu sobre sua a importância de Ayrton em sua vida. Quem quiser ler, está aqui:
http://www.lewishamilton.com/post/senna-hero/

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O espumante com um certo X

O catalão Xavier Gramona serviu o exército, trabalhou em um banco em Londres e acabou assumindo um negócio que conhecia mais como uma brincadeira de infância, quando pisava as uvas nos lagares da bodega que leva o sobrenome da família, a quarenta quilômetros de Barcelona. "Até sair de Barcelona, eu nunca tinha visto uma garrafa com rótulo", afirma. "Quando a família bebia em casa, meu pai mandava buscar um vinho da nossa própria bodega".

Xavier Gramona (à esq.) na propriedade familiar: "Nunca
deixe isso desaparecer", disse-lhe Vásquez Montalbán 
Guardava na memória, também, um encontro com o escritor Manuel Vásquez Montalbán, então o mais quente romancista policial espanhol, criador do detetive Carvalho, um investigador meticuloso e de hábitos sofisticados, que assim como seu criador aparecia em seus thrillers bebendo taças de Gramona. "Nunca deixe isso desaparecer", disse-lhe o seu conterrâneo. "É uma preciosidade nacional."

Quando Xavier começou a trabalhar no negócio da família, a Gramona produzia 150 mil garrafas ao ano. Hoje são 500 mil. É, porém, uma produção ainda pequena se comparada a de gigantes como a Moët & Chandon, que produz 35 milhões de garrafas anuais. É uma bodega quase cult, incensada por alguns críticos e privilegiados que, como o detetive Carvalho, são investigadores dos mais complexos mistérios.

A Gramona utiliza principalmente uma uva característica da Catalunha, que deve à língua basca o mesmo X de Xavier: a Xarel.lo, tradição da casa, que transpôs as fronteiras espanholas depois da Segunda Guerra Mundial. Nessa época, foi quem abasteceu de espumantes a própria França - a terra do champanhe, que perdera quase toda sua produção durante a conflagração. Num tempo em que não havia muitos recursos, sua cava era a única que chegava à França intacta. Mais tarde descobriu-se cientificamente a razão: a uva Xarel.lo é a que possui mais oxidantes, uma propriedade que aumenta sua conservação.

O Gramona parece menos um espumante que um vinho branco frisante: as bolhas são pequenas e apenas dão um frescor inicial ao seu sabor. O que vem depois é um grande vinho branco, encorpado, rico em frutas, com algumas notas surpreendentes, como o abacaxi. E é levemente fumé (defumado) e tostado, característica de alguns grandes brancos. Assim como outros espumantes de alta categoria, pode ser servido não apenas antes da entrada como durante toda as refeição. Funciona com a comida como um toque divino.

Numa degustação no Bardega, no Itaim, em São Paulo, experimentei primeiro o Cava Gramona Allegro Reserva Brut, uma combinação de xarel.lo com Chardonnay e Macabeo, com 18 meses de crianza (contato com a borra) e segunda fermentação na garrafa. Tem já as características  Gramona, embora seja um varietal, e mais leve e refrescante. Preço compensador: 104,76 reais.

Cava Gramona - III Lustros Gran Reserva Brut Nature é 70% Xarel.lo e e 30% Macabeo; parece por isso mais forte, mais espanhol. É um vinho muito frutado e fumé, um espumante que rivaliza com grandes vinhos brancos do mundo, distinguido pela crítica: recebeu a medalha de ouro no Concurso Mundial de Bruxelas, Medalha de Ouro do Guia El País 2009, 4 estrelas Guia Vino y Gastronomía, entre outros.

O preço pode ser mais alto, mas é um negócio maravilhoso, se considerado o preço de outros grandes espumantes aos quais este pode se comparar, que custam no mínimo o dobro: 268,11 reais

Provei o Font Jui Xarel·lo: um vinho branco, que se destaca por ser 100% Xarel.lo. Colhido com cuidado, embarricado em carvalho francês, fica na adega um ano antes de ser vendido. Complexo, untuoso, pode ser servido com frutos do mar, massas e até mesmo com carne de porco e vitela, que teoricamente são acompanhados por vinhos tintos mais pesados. Outro grande negócio: 133,36 reais.

Uma das virtudes do Gramona é o equilíbrio. Há espumantes com muito gás ou muito salgados, o que acontece em geral para cobrir a ausência de notas mais interessantes ao paladar. E preserva sua riqueza mesmo à temperatura em que os espumantes são servidos, de 6 a 9 graus - sabemos que, quanto mais gelado o vinho, menos ele parece "aberto". Um pequeno milagre catalão.

Recebi uma garrafa  de Cava Gramona Imperial Gran Reserva Brut, que o importador quer promover. Mas esse... Vou reservar um bom momento para experimentar.

http://www.casaflora.com.br/busca/gramona