No domingo dia 27 de setembro, grande prêmio do Japão, o inglês Lewis Hamilton, que começou a carreira usando um capacete amarelo em homenagem ao seu ídolo, conquistou o mesmo número de vitórias na Fórmula 1 que Ayrton Senna: 41.
Não que o número de Senna seja algum recorde. Vettel tem esse número de vitórias. O heptacampeão Schumacher teve quase o dobro. A importância é que Hamilton se espelha em Senna e persegue o mito. Certamente é o piloto que mais se parece com Senna, até porque estudou seu estlo de pilotagem a fundo e declaradamente se inspirou nele. Houve quem fizesse comparações. Ele é um grande piloto. Caminha para igualar outro feito de Senna, o tricampeonato, este ano. Faltou-lhe uma corrida para igualar um recorde de Senna, este sim, não batido até hoje: oito pole positions seguidas. Certamente Hamilton estará entre os grandes pilotos da história. Porém, não é como Senna. Uma coisa é ser um grande piloto. E um campeão. Outra coisa é se tornar mito.
Hamilton conquistou 41 vitórias com uma corrida a mais que Senna. Porém, as marcas não são comparáveis. Ele começou sua carreira na Fórmula 1 já na McLaren, uma equipe grande, em condições de ganhar corridas e o campeonato. Senna começou sua carreira na antes irrelevante Toleman. Conseguiu destacar-se justamente por obter resultados muito acima do que o seu equipamento permitia.
Depois, foi para a Lotus, onde conseguiu também uma proeza: vencer com um carro que era apenas médio. Senna não começou por cima. Teve que lutar muito para conseguir um carro de ponta. E ainda assim teve que seguir lutando. Hamilton não tem um adversário à altura em sua própria equipe: Rosberg está longe. Senna teve Prost.
Muita gente lembra da ultrapassagem de Nelson Piquet na curva sobre Senna, uma das mais célebres da Fórmula 1. A realidade é que Piquet andava de Williams, então um carro imbatível. Extraordinário é que Senna estivesse na frente, competindo com um carro bem inferior. Isso é o que Piquet nunca aceitou de Senna, e a razão pela qual tenta até hoje diminuí-lo, uma atitude não muito honrosa para um tricampeão. Piquet foi um grande piloto. Mas não conseguiu nem de longe a admiração que teve seu desafeto, cujo final trágico quase o santificou.
Piquet não está sozinho. Com seus sete títulos, Schumacher é o maior campeão de todos os tempos. Mas nunca se comparou a Senna. Schumacher se beneficiou da boa vontade dos empresários da Fórmula 1, que precisavam fabricar um ídolo incontestável, para levantar o esporte depois do terrível impacto da morte de Senna. Schumacher era um bom piloto, rápido e calculista, mas trapaceava para ganhar e era beneficiado pela equipe em que estava, onde não tinha concorrentes, e pelo sistema. Quando voltou a correr, sem esses privilégios, foi batido sistematicamente pelo companheiro de equipe, Rosberg, o mesmo que hoje come a poeira de Hamilton. Nunca foi admirado como Senna. E nem o destino trágico fora das pistas o transformou em mito.
Senna não teve adversários somente dentro das pistas. Teve contra si o stablishment: a administração viciada da Fórmula 1, que manobrava contra ele. Foi também um símbolo nacional, por vencer e elevar a auto-estima de todo um país, numa época em que o Brasil procurava praticamente se levantar do mundo dos mortos. Foi um ídolo popular, que movimentava multidões. E sua imagem de lutador talentoso e obstinado criou milhões de fãs no resto do mundo.
O que fez Hamilton ter Senna como ídolo foi o que moveu a todos: uma paixão indestrutível, sua capacidade de perseguir um sonho a qualquer preço, incluindo a própria vida, e dividir esse sonho com os fãs.
Cenas que marcaram a memória de uma geração: Senna carregando a bandeira brasileira na volta da vitória, no dia em que o Brasil perdeu uma Copa do Mundo. Senna com o Toleman na chuva, voando em Mônaco, se aproximando de Prost, a bandeirada antes da hora, para que não ultrapassasse o francês. Senna agitando os braços para os mecânicos empurrarem seu carro e relargando para recuperar terreno e vencer de forma incrível no Japão, enquanto Prost ficava na brita - outra vitória que lhe foi tirada pelos cartolas.
Senna não desistia; mesmo quando acontecia algo errado, quase como milagre, sabíamos que ele estaria lá, de volta, lutando: sempre era possível esperar dele o impossível. Por isso, torcíamos para chover. Na situação mais difícil, os carros se equiparavam, prevalecia o talento, e ele aparecia como um super herói no meio do spray. Histórias fantásticas se contavam, ainda antes da Fórmula 1, como a do dia em que ao fim da corrida reclamou que tivera de guiar sem freios numa corrida em Silverstone. Os mecânicos riram. Ao colocar a mão nas rodas, porém, o espanto: as pastilhas estavam frias. Assim surgem as lendas.
Cheguei a conhecê-lo pessoalmente: não conversamos muito, mas pude apertar sua mão. No dia em que morreu, como tanta gente, chorei; não me juntei à multidão que saiu às ruas no seu funeral, mas fui, tempos depois, a uma homenagem no Memorial da América Latina, um dia ao mesmo tempo de tristeza e de festa. Ainda sofro com sua perda. Ao ver o video de Hamilton no carro onde ele brilhou, é difícil não entender como é genuína a emoção do piloto inglês. "É um dos melhores dias da minha vida", disse. Era sempre essa a sensação para nós, quando Senna estava naquele lugar.
PS: Hamilton escreveu sobre sua a importância de Ayrton em sua vida. Quem quiser ler, está aqui:
http://www.lewishamilton.com/post/senna-hero/