segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O Chianti cresce

Sergio Zingarelli, herdeiro de uma das mais tradicionais vinherias do Chianti, na Itália, promoveu nos últimos anos uma grandes transformação - no seu próprio negócio e no de seus vizinhos.

Num passado até recente, os Zingarelli apostaram nos chamados "Supertoscanos": vinhos com cortes de uvas estrangeiras, que visavam sobretudo a produção em massa para a exportação, principalmente para o mercado americano, que consome vinho pela uva, e não pela procedência. Todos os anos, vende pelo mundo cerca de 4 milhões de garrafas, das quais 1 milhão de seu vinho de mesa mais conhecido, o Rocca Delle Macìe.

 Os tempos, porém, estão mudando - e ele se tornou um dos principais renovadores do vinho italiano.

Primeiro, Zingarelli contratou um novo enólogo: Lorenzo Landi. E tratou de investir nas origens, o que significa utilizar novamente em suas garrafas predominantemente a San Giovese, uva autóctone da Toscana. "A qualidade era boa, mas tínhamos vontade de fazer algo mais", diz ele.


Zingarelli, o "signote Chianti": "vontade de fazer mais"
Desde o início dos anos 2000, Zingarelli passou a substituir os vinhedos plantados por seu pai em meados da década de 1970 por San Giovese, "uma uva difícil", segundo diz, porque demanda muita luz e uma técnica diferente, o que em décadas passadas, segundo ele, era "improponível".

Agora, o resultado desse trabalho começa a aparecer. Zingarelli apresentou recentemente seus novos vinhos numa degustação para jornalistas organizado pela importadora Decanter, em São Paulo. Sua proposta é retomar a tradição da uva san Giovese, aumentar a qualidade dos vinhos, sem perder o que a Rocca Delle Macìe possuía, que é sua capacidade de alta produção, a manutenção de um padrão de qualidade, venda e distribuição.

Os novos vinhos de Zingarelli levam mais San Giovese, sem tanta necessidade de uvas complementares. Foi uma certa surpresa: os Rocca delle Macìe, em especial, que nos acostumamos a ver nos supermercado, ganharam força. Os vinhos melhoraram em qualidade. E se tornaram mais caros.

A missão de Zingarelli agora é mostrar que vale a pena pagar mais por rótulos de sua casa. Alguns deles, como o que leva seu próprio nome, já vêm recebendo bom tratamento da crítica ao redor do mundo. 


O rótulo gran selezione: Chianti especial
O que Zingarelli faz com suas fattorias, está fazendo também por todo o Chianti, região conhecida pelos seus excelentes vinhos de mesa, onde estão também produtores e marcas entre as melhores da Itália, sem no entanto receber a mesma denominação. Ele é o terceiro presidente da história do Conzorcio Vino Chianti Classico, mais antiga associação de produtores de vinho do mundo, fundada em 1924. E, à frente da associação, vem introduzidno mudanças inteligentes para a valorização de todo o Chianti.

Designação genérica de uma área vinícola entre Siena e Florença, na Toscana, o Chianti é regulado por normas que vêm mudando recentemente (se considerarmos o vinho como uma tradição centenária). Até 1996, era obrigatório colocar uva branca no Chianti Classico. Desde então ele é 100% tinto. Para ser considerado Chianti, além de produzido na região, o vinho deve ter pelos menos 80% de uva San Giovese.


Tanto o Chianti quanto o Chianti Classico sempre foram conhecidos como vinhos de mesa: um produto mais barato, para acompanhar a refeição (chamado por alguns de "vinho gastronômico"). Recentemente, por meio da associação de produtores, Zingarelli promoveu a criação de uma terceira categoria, que permite a entrada de cortes diversos: Gran Selezione.

Para entrar nessa lista, é preciso passar pelo crivo de uma comissão constituída pela associação. Isso faz com que grandes e célebres produtores que estão na Toscana, especialmente no Chianti, como Antinori, possam ser considerados também "Chianti". O que valoriza toda a categoria.

Porém, é ainda na tradição que Zingarelli ainda aposta mais. Não há uva tão italiana quanto a san giovese, da qual se fazem vinhosbem estruturados, ensolarados, frutados, que nos remetem a um piquenique ao sol entre girassóis nos campos verdes da Toscana, pontilhados pelas colinas onde espairecem antigas e charmosas cidades medievais.

É lá, onde Zingarelli fomenta também o turismo, com relais onde se pode beber o vinho, respirar o ar e inebriar-se com o savoir vivre à italiana, que ele sabe estarem suas raízes. E de onde se espalha o sabor da Itália para o mundo.

Para quem quiser experimentar, aqui vai uma brevíssima ficha com alguns comentários sobre os novos vinhos do Rocca delle Macìe (que se pronuncia "roca dele machíe"):

1) Vermentino Occhio a Vento 2014. Vinho branco DOC da Maremma, influenciado pela terra pantanosa e a proximdade do mar, cor palha, levemente esverdeado, a 99,20 reais. Um ótimo vinho de mesa, complexo, aromático, a bom preço.


2) Morellino di Scansano Campomaccione 2014. Com 90% de San Giovese, 5% de merlot e 55 de cabernet sauvignon, é muito frutado e também amadeirado. 119,20 reais.

3) Chianti Classico família Zingarelli 2013. 95% San Giovese e 5% Merlot ("para dar ao vinho um pouco de gentileza", diz Zingarelli). Foi à final dos 3 Bicchieri do gambero Rosso. Surpreende, mas para quem conhecia o rótulo mais comercial da Rocca delle macíe, é difícil deixar de lado o preconceito e pagar o preço atual de uma garrafa: 131,50 reais.

4) Chianti Classico Riserva 2011. Feito em Castellini in Chianti, com 5% de cabernet sauvignon e 5% de merlot. 212 reais.

5) Chianti Classico Sant'Alfonso 2012. Este vinho tem uma boa história. O pai de Sergio comprou uma fatorria com uma área de 120 hectares, com solo argiloso, e mandou plantar as as vinhas. O enólogo da família, na época, disse que slo argiloso não servia para a viticultura. O velho Zingarelli, então, demitiu o enólogo e colocou outro para fazer o serviço. Criaram ali um cru, 100% san giovese, curtido em barris médios de carvalho francês. o resultado é um Chianit Classico com mais volume, mais estrutura e um tom mais pesado e ferroso. O melhor e degustá-lo no local, onde há um belo relais com nove quartos, uma das maravilhas da Toscana. Preço: 164,70.


6) Chianti Classico Riserva di Fizzano 2010. Com 85% san giovese, 10% cabernet sauvignon e 55 merlot, é um vinho com boa textura e muita acidez, que ainda que precisa e pode envelhecer. Vem da célebre colina de Fizzano, borgo perto de Volterra e San Gimigniano, uma das mais belas propriedades da Toscana e de toda a Itália, que a família adquiriu em 1984. Ali, eles abriram um relais que hoje tem 22 apartamentos e, claro, um restaurante. Da construção centenária se avistam os vinhedos, os olivais e um bosque, onde se pode passar os melhores dias de toda a vida. A garrafa custa 236,50 reais


O relais de Fizzano: o melhor que a vida pode proporcionar


7) Ser Gioveto, 2010. Homenagem do pai, que deu ao vinho nome do filho, é o supertoscano mais vendido no Brasil - fenômeno particular, que não se repete no resto do mundo, muito em razão do fato de aqui ser vendido a preços relativamente baixos para o seu padrão (236,50 reais). Com 80% de sangiovese, 20% de cabernet sauvignon e merlot, e 28.000 garrafas produzidas, é a primeira safra que leva a mão de Lorenzo Landi com esse rótulo.

8) Roccato 2009. Um supertoscano, com 50% sangiovese e 50% merlot. Não é um Chianti, mas fez parte da mostra: um vinho bem estruturado, que com a presença do cabernet é mais perfumado e rascante na língua.

Conclusão? Ah, a Itália...






quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Jamón bellota: a Espanha que desmancha na boca

A peça de jamón: com um vestido de Dior
Assim como os vinhateiros, os produtores do jámon espanhol mantém sua atividade como uma tradição secular, detalhista e sofisticada, da qual vem a fama do presunto ibérico. Vejamos o caso de Josep Ramón Llorens.

Simpático, falante e cioso de seu negócio, ele se dedica na Espanha a uma especialidade ainda maior: o chamado "jamón bellota". Utiliza porcos abatidos com dezoito meses, que durante três comem apenas bellota: a semente do carvalho, que é um tipo de castanha.


O resultado, que Ramón apresentou recentemente a um grupo seleto de jornalistas no restaurante Clos, em São Paulo, é um jamón diferente. Primeiro, na cor. A concentração de belllota na ração do animal faz que o o produto espalhe mais a gordura na carne, que se torna mais rosada, suave e macia.

Em lugar do jamón convencional, que às vezes se mastiga com dificuldade, o jamón ibérico de Llores quase desmancha na boca. Ele mesmo ensina como se deve comer o jamón: "primeiro chupado, depois mastigado", como uma uva. O sabor é aveludado, acastanhado, mais suave que o do jamón comum, e mesmo que o Pata Negra, o clássico e mais conhecidos dos jamóns espanhóis.

Os porcos criados por proprietários sob a supervisão da família de Llores são muito particulares. São todos de raça ibérica pura, pretos, ou cruzados com Durco-Jerseyem, numa proporção de 25%. Depois de queimada, cortada, salgada e colocada em repouso, processo de curtimento que leva quatro meses, a carne é pendurada  em adegas mantidas a níveis constantes de temperatura e umidade.

Llorens, à direita: tradição familiar
As janelas são abertas durante o dia e fechadas à noite, pelo período de dez a doze meses. No final, são ricamente embaladas em sacos vermelhos e depois caixas da mesma cor, que fariam jus a um paletó Armani ou um vestido Dior.

Nem todas as "safras" são válidas para venda. Quando a bellota não é suficiente, ou por qualquer razão se julga que o ano não foi ideal, não há produção. Agora, começa a ser vendida a safra 2010. Chegou à Casa Flora, o importador, um lote de 500 peças. O maior da exportação de Llorens.

Conhecer e manipular o jamón é uma arte. Na adega, a peça costuma recobrir-se de fungos, que ajudam a criar o seu inconfundível bouquet. Cada peça é testada com um furador de osso, que traz de dentro o seu perfume, antes de ser aprovada.

Colocada no garrote, a perna tem de ser cortada circularmente no jarrete, para separar a carne e gordura do pé. Llores recomenda o uso de duas facas: uma mais curta e lisa, para retirar a gordura superior. Outra mais comprida, serrilhada, para fatiar a carne.
A peça: a gordura volta depois como capa para a conservação 

A gordura nunca é jogada fora. Depois de cortada a peça, é recolocada sobre o jamón, pra conservá-lo, como uma manta.

Acompanhamento? Este jamón foi servido com vinho branco Gramona. Porém, vai bem com qualquer vinho tinto. Dê preferência, claro, aos espanhóis.




sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Hamilton, Senna e do que são feitos os mitos


No domingo dia 27 de setembro, grande prêmio do Japão, o inglês Lewis Hamilton, que começou a carreira usando um capacete amarelo em homenagem ao seu ídolo, conquistou o mesmo número de vitórias na Fórmula 1 que Ayrton Senna: 41.

Não que o número de Senna seja algum recorde. Vettel tem esse número de vitórias. O heptacampeão Schumacher teve quase o dobro. A importância é que Hamilton se espelha em Senna e persegue o mito. Certamente é o piloto que mais se parece com Senna, até porque estudou seu estlo de pilotagem a fundo e declaradamente se inspirou nele. Houve quem fizesse comparações. Ele é um grande piloto. Caminha para igualar outro feito de Senna, o tricampeonato, este ano. Faltou-lhe uma corrida para igualar um recorde de Senna, este sim, não batido até hoje: oito pole positions seguidas. Certamente Hamilton estará entre os grandes pilotos da história. Porém, não é como Senna. Uma coisa é ser um grande piloto. E um campeão. Outra coisa é se tornar mito.

Hamilton conquistou 41 vitórias com uma corrida a mais que Senna. Porém, as marcas não são comparáveis. Ele começou sua carreira na Fórmula 1 já na McLaren, uma equipe grande, em condições de ganhar corridas e o campeonato. Senna começou sua carreira na antes irrelevante Toleman. Conseguiu destacar-se justamente por obter resultados muito acima do que o seu equipamento permitia.

Depois, foi para a Lotus, onde conseguiu também uma proeza: vencer com um carro que era apenas médio. Senna não começou por cima. Teve que lutar muito para conseguir um carro de ponta. E ainda assim teve que seguir lutando. Hamilton não tem um adversário à altura em sua própria equipe: Rosberg está longe. Senna teve Prost.

Muita gente lembra da ultrapassagem de Nelson Piquet na curva sobre Senna, uma das mais célebres da Fórmula 1. A realidade é que Piquet andava de Williams, então um carro imbatível. Extraordinário é que Senna estivesse na frente, competindo com um carro bem inferior. Isso é o que Piquet nunca aceitou de Senna, e a razão pela qual tenta até hoje diminuí-lo, uma atitude não muito honrosa para um tricampeão. Piquet foi um grande piloto. Mas não conseguiu nem de longe a admiração que teve seu desafeto, cujo final trágico quase o santificou.

Piquet não está sozinho. Com seus sete títulos, Schumacher é o maior campeão de todos os tempos. Mas nunca se comparou a Senna. Schumacher se beneficiou da boa vontade dos empresários da Fórmula 1, que precisavam fabricar um ídolo incontestável, para levantar o esporte depois do terrível impacto da morte de Senna. Schumacher era um bom piloto, rápido e calculista, mas trapaceava para ganhar e era beneficiado pela equipe em que estava, onde não tinha concorrentes, e pelo sistema. Quando voltou a correr, sem esses privilégios, foi batido sistematicamente pelo companheiro de equipe, Rosberg, o mesmo que hoje come a poeira de Hamilton. Nunca foi admirado como Senna. E nem o destino trágico fora das pistas o transformou em mito.

Senna não teve adversários somente dentro das pistas. Teve contra si o stablishment: a administração viciada da Fórmula 1, que manobrava contra ele.  Foi também um símbolo nacional, por vencer e elevar a auto-estima de todo um país, numa época em que o Brasil procurava praticamente se levantar do mundo dos mortos. Foi um ídolo popular, que movimentava multidões. E sua imagem de lutador talentoso e obstinado criou milhões de fãs no resto do mundo.

O que fez Hamilton ter Senna como ídolo foi o que moveu a todos: uma paixão indestrutível, sua capacidade de perseguir um sonho a qualquer preço, incluindo a própria vida, e dividir esse sonho com os fãs.

Cenas que marcaram a memória de uma geração: Senna carregando a bandeira brasileira na volta da vitória, no dia em que o Brasil perdeu uma Copa do Mundo. Senna com o Toleman na chuva, voando em Mônaco, se aproximando de Prost, a bandeirada antes da hora, para que não ultrapassasse o francês. Senna agitando os braços para os mecânicos empurrarem seu carro e relargando para recuperar terreno e vencer de forma incrível no Japão, enquanto Prost ficava na brita - outra vitória que lhe foi tirada pelos cartolas.

Senna não desistia; mesmo quando acontecia algo errado, quase como milagre, sabíamos que ele estaria lá, de volta, lutando: sempre era possível esperar dele o impossível. Por isso, torcíamos para chover. Na situação mais difícil, os carros se equiparavam, prevalecia o talento, e ele aparecia como um super herói no meio do spray. Histórias fantásticas se contavam, ainda antes da Fórmula 1, como a do dia em que ao fim da corrida reclamou que tivera de guiar sem freios numa corrida em Silverstone. Os mecânicos riram. Ao colocar a mão nas rodas, porém, o espanto: as pastilhas estavam frias. Assim surgem as lendas.

Cheguei a conhecê-lo pessoalmente: não conversamos muito, mas pude apertar sua mão. No dia em que morreu, como tanta gente, chorei; não me juntei à multidão que saiu às ruas no seu funeral, mas fui, tempos depois, a uma homenagem no Memorial da América Latina, um dia ao mesmo tempo de tristeza e de festa. Ainda sofro com sua perda. Ao ver o video de Hamilton no carro onde ele brilhou, é difícil não entender como é genuína a emoção do piloto inglês. "É um dos melhores dias da minha vida", disse. Era sempre essa a sensação para nós, quando Senna estava naquele lugar.

PS: Hamilton escreveu sobre sua a importância de Ayrton em sua vida. Quem quiser ler, está aqui:
http://www.lewishamilton.com/post/senna-hero/

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O espumante com um certo X

O catalão Xavier Gramona serviu o exército, trabalhou em um banco em Londres e acabou assumindo um negócio que conhecia mais como uma brincadeira de infância, quando pisava as uvas nos lagares da bodega que leva o sobrenome da família, a quarenta quilômetros de Barcelona. "Até sair de Barcelona, eu nunca tinha visto uma garrafa com rótulo", afirma. "Quando a família bebia em casa, meu pai mandava buscar um vinho da nossa própria bodega".

Xavier Gramona (à esq.) na propriedade familiar: "Nunca
deixe isso desaparecer", disse-lhe Vásquez Montalbán 
Guardava na memória, também, um encontro com o escritor Manuel Vásquez Montalbán, então o mais quente romancista policial espanhol, criador do detetive Carvalho, um investigador meticuloso e de hábitos sofisticados, que assim como seu criador aparecia em seus thrillers bebendo taças de Gramona. "Nunca deixe isso desaparecer", disse-lhe o seu conterrâneo. "É uma preciosidade nacional."

Quando Xavier começou a trabalhar no negócio da família, a Gramona produzia 150 mil garrafas ao ano. Hoje são 500 mil. É, porém, uma produção ainda pequena se comparada a de gigantes como a Moët & Chandon, que produz 35 milhões de garrafas anuais. É uma bodega quase cult, incensada por alguns críticos e privilegiados que, como o detetive Carvalho, são investigadores dos mais complexos mistérios.

A Gramona utiliza principalmente uma uva característica da Catalunha, que deve à língua basca o mesmo X de Xavier: a Xarel.lo, tradição da casa, que transpôs as fronteiras espanholas depois da Segunda Guerra Mundial. Nessa época, foi quem abasteceu de espumantes a própria França - a terra do champanhe, que perdera quase toda sua produção durante a conflagração. Num tempo em que não havia muitos recursos, sua cava era a única que chegava à França intacta. Mais tarde descobriu-se cientificamente a razão: a uva Xarel.lo é a que possui mais oxidantes, uma propriedade que aumenta sua conservação.

O Gramona parece menos um espumante que um vinho branco frisante: as bolhas são pequenas e apenas dão um frescor inicial ao seu sabor. O que vem depois é um grande vinho branco, encorpado, rico em frutas, com algumas notas surpreendentes, como o abacaxi. E é levemente fumé (defumado) e tostado, característica de alguns grandes brancos. Assim como outros espumantes de alta categoria, pode ser servido não apenas antes da entrada como durante toda as refeição. Funciona com a comida como um toque divino.

Numa degustação no Bardega, no Itaim, em São Paulo, experimentei primeiro o Cava Gramona Allegro Reserva Brut, uma combinação de xarel.lo com Chardonnay e Macabeo, com 18 meses de crianza (contato com a borra) e segunda fermentação na garrafa. Tem já as características  Gramona, embora seja um varietal, e mais leve e refrescante. Preço compensador: 104,76 reais.

Cava Gramona - III Lustros Gran Reserva Brut Nature é 70% Xarel.lo e e 30% Macabeo; parece por isso mais forte, mais espanhol. É um vinho muito frutado e fumé, um espumante que rivaliza com grandes vinhos brancos do mundo, distinguido pela crítica: recebeu a medalha de ouro no Concurso Mundial de Bruxelas, Medalha de Ouro do Guia El País 2009, 4 estrelas Guia Vino y Gastronomía, entre outros.

O preço pode ser mais alto, mas é um negócio maravilhoso, se considerado o preço de outros grandes espumantes aos quais este pode se comparar, que custam no mínimo o dobro: 268,11 reais

Provei o Font Jui Xarel·lo: um vinho branco, que se destaca por ser 100% Xarel.lo. Colhido com cuidado, embarricado em carvalho francês, fica na adega um ano antes de ser vendido. Complexo, untuoso, pode ser servido com frutos do mar, massas e até mesmo com carne de porco e vitela, que teoricamente são acompanhados por vinhos tintos mais pesados. Outro grande negócio: 133,36 reais.

Uma das virtudes do Gramona é o equilíbrio. Há espumantes com muito gás ou muito salgados, o que acontece em geral para cobrir a ausência de notas mais interessantes ao paladar. E preserva sua riqueza mesmo à temperatura em que os espumantes são servidos, de 6 a 9 graus - sabemos que, quanto mais gelado o vinho, menos ele parece "aberto". Um pequeno milagre catalão.

Recebi uma garrafa  de Cava Gramona Imperial Gran Reserva Brut, que o importador quer promover. Mas esse... Vou reservar um bom momento para experimentar.

http://www.casaflora.com.br/busca/gramona

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Um belo desconhecido: o tinto da Peique, com a intrigante uva Mencía

Ao norte da Espanha, na província de Leon, o povoado de Vantuille de Abajo, com cerca de 200 habitantes,  fica entre uma muralha em ruínas (o Castro de La Ventosa) e o caminho mágico que leva a Santiago de Compostela. Uma região pedregosa e bela, na porção espanhola  entre a França e Portugal, dentro da pequena província conhecida como o Bierzo (o berço), derivado no nome original da antiga cidade fortificada pelos romanos, Bergidum Falvium. Ali, a família Peique dedicou-se a plantar a Mencía, uma uva autóctone, adaptada ao terreno inclinado, seco e sujeito ao clima tanto do Atlântico quanto do Mediterrâneo.

Na semana passada, como muita gente, parei um tanto cético diante da mesa de Peique na Enoteca Decanter, que promoveu uma degustação de uma dezena de vinícolas , entre chilenas, francesas e espanholas. Cético porque, também como muita gente, e a maioria dos céticos, não conhecia bem essa uva tão particular, nem o caráter da bodega, fiel à sua pouco conhecida uva e seu terroir. E a Peique surpreende com um vinho tão bom, mesmo fora dos esquadros da fama da vinicultura espanhola, concentrada nos célebres vinhedos da Rioja e suas célebres marcas, como Vega Sicilia.

Nem um cético absoluto deixaria de se encantar com os Peique à primeira prova. De forma geral, os Mencía da Peique são vinhos bem estruturados, equilibrados e ricos em aromas e sabores, que emanam  em profusão de cada taça. Melhor: a Mencía tem uma textura aveludada, o que faz de cada gole um verdadeiro deleite.

Num vinhedo pequeno, as uvas estão muito perto da bodega, o que garante maior frescor e qualidade do produto ainda antes da fermentação.Todos os vinhos de Peique são de uva Mencía, - variam somente em função da safra, dos anos da vinha e pequenos detalhes da produção. Pode-se ter certeza de beber um belo vinho mesmo das garrafas mais baratas, tanto quanto de que vale o preço das mais caras.

Os que experimentei:

Tinto Mencía Bierzo 2013. Tem todas as características da Mencía, ao preço mais em conta: 88 reais.

Ramón Valle Bierzo 2012. Um pouco mais pronto, buquê muito rico, eflúvios de cereja e outra frutas, um belo vinho a 118 reais.

Viñedos Viejos Bierzo 2010. Também Mencía, com a diferença de que é feito de uvas colhidas de vinhedos mais antigos, com 70 anos de idade - com raízes mais antigas, retira da terra mais sabores minerais. Fica 12 meses em barris, metade desse tempo em barris novos, outra metade em barris antigos. dessa combinação surge um grande vinho e a melhor relação entre custo e sabor do portfolio: custa 144 reais.

Selección Familiar Bierzo 2006. Vem dos vinhedos mais antigos, com 90 anos e mais teores minerais. Um grande vinho para acompanhar uma refeição mais pesada, como carne de caça. 318 reais.
Vinhedo da Peique no outono: solo seco e clima com
 influência do Atlântico e do Mediterrâneo

Luis Peique 2008. O top de linha da Peique, também dos vinhedos mais velhos, porém com um toque um pouco diferente do Selección: é fermentado em barricas de 500 litros com as uvas inteiras (sem romper). Pronunciado sabor de cereja, um grande vinho, que justificria o preço de 468 reais se os anteriores não fosse já quase tão bons quanto este a preços mais convidativos.

Grandes vinícolas, inclundo as europeis, se especializaram nos ultimos anos em investir em uvas como pinot noir, cabernet e outras, mais conhecidas. Utiliza-se cabernet sauvignon na Italia, assim como no Novo Mundo. A Peique, com sua uva tão particular, lembra como uma vinícola dedicada totalmente à uva autóctone pode ser original e alcançar o paladar universal. Ainda mais num lugar que, pelo próprio nome (Bierzo), parece bastar a si mesmo.

Onde encontrar: http://www.decanter.com.br/

terça-feira, 15 de setembro de 2015

A melhor amiga do homem

Acabo de ganhar de um amigo um grande livro, Cartas Extraordinárias, publicado no Brasil pela Cia das Letras, com excertos da correspondência pessoal de "pessoas notáveis". Um brilhante registro em texto e reproduções do momento íntimo de personagens históricos, entre políticos, cientistas e artistas, que mostra também o quanto a escrita está relacionada à personalidade - e ao nosso estilo.

Meisterstuck: pesa na mão e faz a escrita fluir suavemente
Mesmo nestes tempos digitais, em que usamos os dedos mais para deslizar sobre a tela transparente, escrever à mão é uma atividade essencial. Dizem os psicólogos que as crianças não podem deixar de exercitar a escrita manual, uma forma elementar de desenvolvimento da capacidade motora e cognitiva. E a escrita segue nos acompanhando pela vida, como um momento pessoal, em que a linguagem escrita e o desenho se misturam, de uma forma inconfundível de indivíduo para indivíduo. Nossa letra é uma outra forma de impressão digital. Por isso, é muito importante escolher uma boa companhia, capaz de nos ajudar na expressão.

Como escritor e jornalista, passei minha vida com uma caneta à mão. Tenho o hábito de levar um pequeno caderno a todo lugar onde vou. Ali rabisco pensamentos, desenhos, palavras, bilhetes, contas domésticas, tudo. Faço anotações para livros, poemas, lembretes. Coisas que escrevo só para mim mesmo.

Um caderno pessoal, quase um diário, é como estar em casa, em qualquer lugar. Uso nos aviões, porque não é aparelho eletrônico e portanto não precisa ser desligado na decolagem como tablets e celulares.

Carta de Elvis ao presidente, escrita no avião
Em suma, a caneta é a melhor amiga do homem. Uma companheira de todas as horas, que combina com a gente e deixe no papel algo que sintamos ser nosso. Algo com que a gente se identifica.

Minhas canetas preferidas são uma esferográfica Montblanc Meisterstuck ("masterpiece", ou obra de arte, em alemão). Pesa na mão, o que diminui o esforço e faz o traço de fluir suavemente. Porém, como a ganhei de presente de uma namorada quando tinha vinte anos, eu a uso mais em casa. Fica guardada numa gaveta de documentos, como uma relíquia.

Anotações de Charles Darwin
Para o dia a dia, uso mais as Parker Jotter, coloridas, e uma versão mais clássica, com o metal quadriculado num sutil relevo. A primeira delas, comprei numa farmácia há mais de vinte anos, em Nova York, onde decidi vagabundear por uns tempos, quando apenas sonhava me tornar um escritor. São elegantes, leves, como uma rápida pincelada, o que combina com meu jeito de escrever; sem serem caras ou ostentatórias possuem um design clássico, que remete aos anos 1960. Isto é, são da minha safra. E por fim: me acompanham há muito tempo. Ganharam a força do hábito.
As Parker Jotter e o caderninho Milquerius:
companheiros inseparáveis

Deixo uma sempre dentro do caderninho com capa de couro; prefiro o Milquerius, espanhol, flexível, resistente, que não solta as folhas. Tão bom quanto o Moleskine, usado por gente que vai de Dom Pedro II a Hemingway. Porém, mais barato.

Um homem não é um verdadeiro homem sem uma caneta. Olhe, pesquise, veja qual se identifica mais com você. Uma caneta, por mais cara que seja, nunca substitui as boas ideias. Mas ajuda a dar prazer ao ato de escrever, o que sempre azeita o cérebro e estimula a imaginação.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Por que amávamos Betty Lago


Existem atores que criam a chamada persona, um tipo que  repete sempre a si mesmo, porque é essecialmente a própria pessoa, algo indissociável. Assim era a atriz Betty Lago. Ela podia encarnar personagens diferentes, da madame à barraqueira, mas de certa forma fazia sempre a si mesma. Por isso, a amávamos - não pelos personagens que fazia, e sim pelo que ela era, sempre.

Mas por que a amávamos, mesmo?

Antes de mais nada, Betty era um modelo de elegância e refinamento. Não apenas por ter sido modelo, mas por gostar da moda, vir da moda, fazer moda. Com seus lenços no longo pescoço, era a imagem da mulher sofisticada, tanto na maneira de se vestir, de se portar, como de falar. Mesmo quando encarnava a mulher desbocada, era luxuosa, aberta, livre. Não há nada mais sexy que uma mulher elegante que se permite a pornografia. Betty podia falar de qualquer assunto, incluindo sexo, que saía com uma afetação cheia de graça. Como tudo.

Dela emanava uma superioridade aristocrática, que no entanto não era ofensiva, contrabalançada por uma maneira espirituosa de encarar a si mesma. Betty ironizava a imagem da "perua" ao mesmo tempo em que a assumia. E na realidade não era uma perua. Era, no sentido de criar arte, influenciar o comportamento, uma intelectual.

Betty Lago representou, em certa medida, a imagem da mulher inteligente, livre e perfeita, da melhor forma. Sua beleza não era a óbvia, grega, clássica. Tinha mais a ver com o charme e a construção do estilo. Betty tinha um nariz saliente, que para muitas mulheres seria candidato à cirurgia plástica, mas que ela conservou como uma marca diferente, individual, que trazia a mesma personalidade com que usava suas roupas.

Sim, Betty tinha beleza, classe, educação, fama, bom humor. Só não teve uma vida longa; ao morrer aos 60 anos de idade, em virtude de complicações de um câncer, deixa saudade e essa sensação de que o perfeito é muito passageiro, o belo é fugaz e tem de ser aproveitado enquanto dura.

Ficará como uma Greta Garbo brasileira, preservada pelas circunstâncias que a levaram tão cedo, impedindo-a de envelhecer - embora saibamos que, com seu imenso charme, Betty também saberia envelhecer muito bem.

Para lembrá-la, aqui vão algumas fotos aos leitores de O Homem Casual, capazes de tirar de qualquer um aquele secreto suspiro.











Maldição e glória de uma equipe chamada McLaren

Bruce McLaren: talento da tecnologia e da pilotagem que
serviu de modelo para a própria escuderia
Com o rosto jovial e sonhador de um estudante secundarista, ligeiramente manco, resultado de uma doença que o deixou com a perna esquerda mais curta que a direita desde a infância, o neo-zelandês Bruce McLaren foi um fenômeno do design, da engenharia e do esporte.

Melhor que ninguém, ele simbolizou ao mesmo tempo o arrojo tecnológico e a coragem humana. Competiu pela primeira vez aos 14 anos de idade com um carro restaurado na oficina de seu pai, em Auckland. Aos 16, estava a bordo de um Fórmula 2, que ajudou a melhorar com seu talento para a mecânica de competição. Levado à Fórmula 1 pelo compatriota Jack Brabham em 1959, aos 22 anos tornou-se o mais jovem piloto a vencer uma prova da categoria, no Grande Prêmio dos Estados Unidos.

Em dois anos, tinha sua própria escuderia, a Bruce McLaren Motor Racing, e em outros três anos fabricava seus próprios carros. A equipe McLaren venceu cinco corridas em 1967 e quatro em 1968, num tempo em que havia somente seis provas por ano. Em 1969, a equipe McLaren ganhou todas as 11 provas da temporada.

Meteórico como sua carreira, Bruce McLaren morreu no auge, no dia 2 de junho de 1970, quando testava pessoalmente o modelo M8D, depois de escapar de traseira em uma curva, no autódromo de Goodwood, na Inglaterra. Tinha 33 anos de idade. Certa vez, escrevera sobre a morte de um colega (o piloto Timmy Mayer, acidentado numa prova na Tasmânia) palavras que poderiam ser também seu epitáfio: “A notícia de sua morte foi terrível, mas quem disse que ele não viu mais, fez mais e aprendeu mais em poucos anos que outras pessoas durante uma longa existência?”

Assim começou a história da equipe McLaren, a segunda mais vitoriosa da Fórmula 1, atrás somente da Ferrari. Comprada na década de 1980 pelo ex-mecânico Ron Dennis e o investidor árabe Mansour Ojjeh, dono da Techniques D’Avant Guarde(TAG), a equipe conquistou 11 títulos da competição máxima do automobilismo, com mais de 150 vitórias em seiscentas corridas, impulsionada por nomes que incluem Emerson Fittipaldi e Ayrton Senna - outra lenda meteórica das pistas, campeão mundial três vezes e piloto com mais vitórias pela escuderia (35).



Senna: maior vitorioso numa escuderia onde só cresceu a lenda

Foi no mito construído em torno da McLaren, mais jovem que o da Ferrari, mas de grande força, que a Mercedes buscou a fonte para produzir carros de rua como o Mercedes-Benz SLR McLaren, seu esforço de fazer o melhor carro esportivo do mundo, no mínimo comparável aos bólidos da Casa de Maranello. Nas pistas, a McLaren trocou suas cores originais (branco e vermelho) pelo cinza prateado da Mercedes e, depois de certo período de ajustes, voltou ao mais alto nível da Fórmula 1. A Mercedes, por seu turno, ganhou um vasto laboratório de testes, a possibilidade de mergulhar novamente dentro do automobilismo de ponta e transformar essa experiência em carros melhores para as ruas.


Mercedes SLR McLaren: parceria para fazer
o melhor escportivo do mundo

A dissociação das duas marcas começou com a decisão da Mercedes de possuir uma escuderia própria, talvez incluenciada também pelo escândalo de espionagem que desmoralizou a escuderia, levada a uma surra esportiva e moral no ano de 2007. Acusada de copiar o carro da Ferrari, e mais, de receber informações do chefe de mecânicos da escuderia italiana, Nigel Stepney, a McLaren perdeu não apenas todos os pontos no campeonato de construtores como, na última prova, e por apenas um ponto, o campeonato de pilotos.

A mancha permaneceu sobre os envolvidos, a começar pelo pelo chefe da equipe, Ron Dennis, que na época disse não estar sabendo de nada (mentiroso ou ingênuo?), e o ex-campeão Fernando Alonso, que dedurou a própria equipe por motivo torpe (salvar-se de uma punição). Resvalou em Lewis Hamilton, então um jovem estreante, que cometeu todos os erros possíveis para morrer na praia de um campeonato que era virtualmente seu.


A McLaren em 2015: desastre nas pistas na
tentativa de reeditar a parceria com a Honda

Nigel Stepney, que procurava vingar-se da Ferrari, frustrado por não ter sido promovido, foi banido das pistas - o único indivíduo efetivamente punido. A Mclaren este ano amarga as últimas colocações, na tentativa de reconstrução, numa parceria com a Honda, que no passado já lhe deu glórias, mas por enquanto torna a participação da velha legenda tão embaraçosa nas pistas quanto seu
s escândalos recentes.


Porém, sabemos que os mitos não morrem e podem ressurgir. A fonte de inspiração continua lá, para provar que nem mesmo a morte, numa curva de Goodwood, pode ser o fim.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A lojinha de prazeres proibidos do senhor Woo

Não há melhor maneira de fazer alguns achados do que andar a esmo pela rua. Nas minhas tardes vazias, circulando num dos longos intervalos do trabalho no abafado quartinho do hotel Cosmopolitan, quando morava em Nova York, acabei achando por acaso a loja de charutos do senhor Woo, cujo nome já posso declarar: The Wall Street Humidor.
Ora, todo mundo sabia, em pleno 2005, que charutos cubanos eram proibidos nos Estados Unidos, por causa do embargo econômico à pequena ilha comunista, que vigorava desde os anos 1960. Era famosa a história segundo a qual o presidente John Kennedy, em uma viagem de iate num fim de semana, teria distribuído charutos cubanos aos seus convidados, dizendo: “Aproveitem, porque amanhã decretarei o embargo a Cuba”. E todo mundo sabia também que, nos Estados Unidos, proibido significa, mesmo, proibido. Decidi, então, desafiar a teoria de que em Nova York tem realmente de tudo.
A loja do doutor Woo ficava na rua Warren, uma travessa despretensiosa da Broadway, não muito longe da prefeitura, do Ground Zero e, mais adiante, de Wall Street. Olhei para os charutos atrás do vidro. Pensei em como chegaria ao âmago da questão e resolvi interpelar o jovem vendedor atrás do balcão à queima roupa, com a maior naturalidade.
– Eu queria um charuto cubano.
O vendedor quase pulou para trás, de susto. Antes que ele dissesse qualquer coisa, aproximou-se o dono da loja. Era Woo, apertando seus olhinhos de chinês. Quis saber a razão da pergunta.
– Sou um jornalista e escritor brasileiro – eu disse, em inglês. - Conheço um pouco de charutos e queria saber onde e como se consegue charutos cubanos aqui na cidade.
Para minha surpresa, Woo falava português perfeitamente. Nunca tinha estado no Brasil, mas tivera uma namorada brasileira que lhe ensinara o beabá da última, inculta e mais bela flor do Lácio. Por isso achou-me simpático; disse que eu não podia lhe dar um susto daqueles, podia ser confundido com algum fiscal.
O salão era comprido. Mais ao fundo, naquele tempo havia um cercadinho demarcado por uma grade de ferro, com um portão baixo, defendido pela placa com a inscrição: “Member’s only”. Lá dentro, à vista de quem passava pela loja, havia uma mesa de doze lugares.
Numa das cadeiras, sentava-se um judeu de larga circunferência abdominal, usando um pequeno quipá na cabeça bovina, de onde se desprendia a barba encaracolada. Fumava um churchill enquanto trabalhava ao laptop, ligado a uma tomada no chão. Woo me levou para os fundos da loja, onde havia um mezanino e alguns armários invisíveis da entrada.
– Sabe, aqui vem muita gente – disse ele. – Aquele sujeito que está ali fumando, por exemplo, é dono de uma grande companhia de informática. Sua fortuna pessoal ultrapassa os 500 milhões de dólares. A sede da companhia fica aqui perto, tem mais de vinte andares, mas ele vem trabalhar aqui todas as tardes.
– Por quê? – perguntei.
– Porque lá, como em todos os escritórios, é proibido fumar.
Com uma chave retirada do próprio bolso, abriu um grande armário, cheio de caixas de cubanos legítimos.
– Você não pode escrever sobre nada disso aqui – ele disse. – É proibido nos Estados Unidos, é claro, mas as pessoas, é lógico, procuram o que há de melhor.
Naquele instante, entrou um sujeito de paletó e gravata. Woo pediu licença para atendê-lo.
– Só um momento, é um cliente importante.
Cumprimentou o recém-chegado, um americano meio calvo, num terno impecável; remexeu em seu armário e lhe entregou uma das suas caixas secretas. Depois que o homem pagou a compra e saiu, levando consigo seus ouvidos, Woo segredou:
– Aquele ali era o assessor do Rudolph Giuliani – disse, referindo-se ao respeitadíssimo ex-prefeito da cidade, homem que implantara a tolerância zero contra o crime e varrera os fumantes com sua cinza dos escritórios. – Não conte a ninguém, mas o Giuliani adora charutos. E a gente procura atendê-lo.
Apossei-me ali mesmo de uma carteira de torpedos Romeo e Julieta. Ao voltar ao salão, parei diante da placa que demarcava o território onde sentava-se o judeu proibido de trabalhar à vontade dentro de sua própria companhia. “Member’s Club”. Ele levantou os olhos na minha direção.
– O que preciso fazer para me tornar membro? – perguntei.
Ele sorriu, com os dedos cruzados sobre a barriga.
– Creio que apenas entrar.
Foi o que fiz.
Passei a frequentar a loja do senhor Woo. Levava meu laptop e escrevia na mesa do Member’s Club, um dos poucos lugares que, talvez por ser integrado por gente acostumada à discriminação, era o recanto mais democrático e igualitário dos Estados Unidos – o único no qual fui admitido sem qualquer cerimônia.
Em Nova York, onde se proibia tudo aquilo que se praticava e vice-versa, a loja do senhor Woo era uma espécie de oásis amigável, onde se podia cometer pequenos crimes impunemente – pelo menos por algum tempo.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Em setembro, o troféu Fair Play vai para: Gisele Bündchen

Como uma mulher reagiria ao saber que seu marido participou de uma festinha com a babá, dentro de um avião, na companhia de um notório bagunceiro? E se essa mulher fosse uma das mais belas do mundo e a história fosse parar em todas as colunas de fofocas?

Gisele Bündchen saiu-se com classe. Foi com o marido, o quarterback Tom Brady, ao cinema. De mãos dadas. Apenas para ser fotografada pelos paparazzi. No seu Instagram, postou uma foto de Brady brincando com a filha - e a legenda: "Meu coração se derrete".

Saída para o cinema: recado pelos paparazzi

Gisele fez exatamente o que sugere a foto no Instagram. Tratou de colocar na frente o mais importante - a família. E lidou com a molecagem do marido dessa forma: como uma molecagem.

Às vezes há relações que quebram e não podem ser consertadas. Porém, a forma de lidar com a crise mostra quem são as pessoas. Gisele mostrou que não é apenas uma das mulheres mais belas do mundo. É também uma grande mulher. Mostrou-se superior. Pode ter sido duro, mas soube perdoar. Com sua atitude, deixou no chinelo a babá, o parceiro de farra Ben Affleck, e sobretudo o marido. Uma boa lição. Brady tem a chance que não merecia.

A foto do Instagram: "My heart melts"
Por isso, Gisele recebe o nosso Troféu Fair Play de setembro. Troféu este dedicado não apenas às mulheres que dizem o que somente os homens entendem, como fazem aquilo que não se esperaria nem de um homem.

Em sua homenagem , aqui vai uma seleção de outros dos seus grandes momentos.










quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Como combinar ternos, camisas e gravatas

Essencial para o conforto e o equilíbrio do terno, a camisa é um elemento sempre mutante conforme a moda e or isso é um vasto campo para indagações e equívocos. A mais tradicional é a branca, um clássico, que deve ser coordenada de preferência com gravatas e paletós também clássicos. Clássicas são as gravatas lisas (sem estampas) ou de estilo regimental (com listras diagonais), que receberam este nome por sua identificação com os regimentos ingleses. Desenhos pequenos também vão bem. Muito elegantes e também clássicas são as gravatas de jacquard, seda cujos desenhos são formados pela própria estampa do tecido.
Camisa branca de algodão e gravata de jacquard: dois elementos
clássicos que transmitem sobriedade

Camisas com padronagens enriquecem a compodição da vestimenta. Camisas com listras tradicionais, mais estreitas, podem ser consideradas clássicas. Permitem mais ousadia na combinação com a gravata. Não é absurdo combinar gravatas com listras em diagonal e camisas com listras verticais. Depende da harmonia entre os desenhos e sobretudo das cores. Cuidado com a camisa xadrez, porque harmonizá-la com a gravata é sempre um desafio. No entanto, pode ser usadas com gravatas listradas ou estampadas, lisas ou com quadrados.

O "focale" romano, origem do foulard
As camisas de algodão são melhores para o clima tropical. Como o algodão é uma fibra natural, o tecido é mais fresco e, assim, mais indicadas para o verão; além disso, absorve melhor o suor, mantendo o corpo seco. As melhores camisas de algodão possuem fibras longas, que formam um tecido fino, brilhante e macio. Olhe a borda do tecido, por dentro da costura. As de fibra longa não deixam aqueles pequenos fios se desprendendo.

O algodão amarrota. Por isso, muito fabricantes misturam o algodão com poliéster, uma fibra sintética, o que deixa a camisa mais quente e menos adequada à transpiração. Por isso, as de algodão ainda são mais confortáveis. Camisas de seda são leves, porém bem mais caras e dão um ar de luxo que hoje parece exagerado.

Na roupa formal, a gravata é complemento obrigatório da camisa. Não se trata de um mero enfeite: para o homem, é um  marco civilizatório. Terno sem gravata, dizia o mestre Fernando de Barros, não é roupa casual: é apenas o terno sem a gravata. Criada no início do Século XIX, sua função é a de cobrir os botões, conferindo mais elegância ao conjunto do terno. Por isso, na roupa casual, em que não se usa gravata, a camisa preferencialmente deve ser a camiseta branca ou azul marinho, ou a camisa polo, que só tem botões perto do colarinho.

O foulard dos croates, em 1635 e nos uniformes croatas de hoje:
origem de uma peça de roupa e de todo um país
A função mais relevante da gravata, porém, é conferir personalidade. Como a roupa formal clássica masculina não varia muito, ela se transformou num distintivo onde prevalece a liberdade. Com a gravata que se pode dar um toque pessoal até mesmo a um clássico terno azul-marinho. Permite saber se a pessoa é mais séria ou bem-humorada; publicitários, por exemplo, se especializaram em transformá-la num espaço criativo, para demonstrar sua aproximação com a imaginação e a arte. Já profissionais de áreas em que se pede sobriedade e comportamento rígido usam gravatas lisas ou regimentais, transmitindo melhor uma aura de austeridade.

A história da gravata vem da antiguidade. Nas colunas de Trajano, erguidas para comemorar a vitória do imperador Trajano sobre os Dácios, mostra-se os soldados romanos com o foulard (palavra francesa originária dos "focales" romanos, em latim). São os lenços que os legionários amarravam ao pescoço com um pequeno nó, para proteger o pescoço do sol e enxugar o suor. O foulard também era adotado pelos exércitos chineses do imperador Qin Shi Huangdi, cerca de três séculos da era cristã, como se vê pelos célebres solados de terracota, descobertos por arqueólogos em 1974.

A gravata contemporânea também vem da guerra. Os soldados da Croácia, no confliyo de natureza religiosa contra franceses e suecos, em 1635, usavam o foulard como identificação da sua patente, a graduação dos militares. Essa diferença estava inclusive no tecido, mais rústico para soldados e de seda para os oficiais. O próprio termo, croates, que denominava esses soldados mercenários e depois seria a identidade de todo um país, deu origem à palavra "gravata".
Gravatas vivas dão um tom mais chamativo
mesmo a um terno clássico

A moda "croata" foi lançada na França na década de 1650, levada por aristocratas que adotavam roupas ao estilo militar. Assim como as perucas, as gravatas não tinham função prática, mas seu uso se disseminou. E chegou à Inglaterra pelo imperador Charles II, de onde seguiu para suas colônias, incluindo os Estados Unidos.

Mais tarde, a gravata se transformou em objeto cult. Honoré de Balzac, no inpicio do século XIX, com o pseudônimo de Barão Émile de L´Empesé, prefaciou e editou um tratado sobre gravatas. Eduardo VII, o Duque de Windsor, lançou um nó mais confortável, que acabou se tornando mais conhecido como "nó de Windsor". O foulard tornou-se conhecido como "Byron", em homenagem ao poeta, que era seu fã.

Há muito tempo se tenta abolir as gravatas, sem sucesso. Na década de 1960, assim como os sutiãs pelas feministas, elas chegaram a ser queimadas publicamente como símbolo da "burguesia". Porém, as gravatas resistem ao tempo. Já foram largas, já foram finais; já foram lançados modelos de crochê e outros materiais. A gravata clássica é de seda, especialmente as italianas. As mais célebres são do lago de Cômo, na Itália, de onde saem as melhores gravatas de jacquard do mundo.
Uma camisa colorida abafa um pouco as gravatas mais
chamativas, evitando o exagero, em nome do equilíbrio

Ao comprar uma gravata, procure dentro dela, com os dedos, o fio solto da costura e puxe: ela deve enrugar o tecido. Esse é o nó com que o artesão finaliza a gravata costurada manualmente. Quando a gravata não tem esse fio, é porque foi feita por uma máquina.

A medida padrão da gravata é de 12 centímetros na sua parte mais larga.  Porém, hoje se pode usar gravatas de várias larguras e padronagens, desde que se observe a combinação com a camisa.

Gravatas clássicas, como a regimental, podem ter desenhos
um pouco mais ousados, por exemplo com listras mais largas
e cores de combinações mais ousadas
Estampas com quadrados, bolinhas, desenhos, ou mesmo as cássicas ou regimentais devem ser combinadas com a camisa de forma inteligente, para não parecerem monótonas, por um lado, ou extravagantes demais, por outro - a menos que esse seja o efeito desejado.

Gravatas mais vivas dão ar mais ousado a alguém com um terno clássico. Com um blazer de cor mais forte, ficam ainda mais chamativas. Um camisa azul ou cinza abafam um pouco a cor da gravata.


Camisas brancas dão destaque a gravatas coloridas. Por isso, prefira usar gravatas mais claras, no tom e na estampa. Ou, então, use gravatas clássicas, lisas, como as de cor azul-marinho e as regimentais.

Use bem as padronagens. Gravatas lisas em camisas lisas, tom sobre tom, são símbolo de elegância clássica. Você pode usar gravatas listradas sobre uma camisa xadrez, desde que exista algum tipo de harmonia, por exemplo, nas cores. E esse tipo de combinação fica melhor se usado com paletós liso, um elemento mais clássico.

Há gravatas inspiradas nos desenhos clássicos, porém com um pouco mais de ousadia, como as feitas com riscas mais largas e combinações ousdas de cores: vermelho e roxo, cinza, verde e roxo. Isso é válido, assim como gravatas com desenhos pequenos. Porém, cuidado. Gravatas berrantes com terno marrom o bege, por exemplo, são uma cacofonia visual.

Pode-se combinar camisas clássicas com desenhos mais ousados
e padronagens diferentes de camisa e gravata com
o uso certo das cores e outros elementos clássicos
Gravatas mais rebuscadas pedem outros
elementos mais clássicos para o equilíbrio

O nó da gravata deve permitir que ela fique na posição correta, que é com as duas pontas sobre o furo do cinto - bem acima, nem abaixo. Usar a gravata com a ponta maior sobre o cinto, deixando por dentro uma ponta menor, é um desleixo inadmissível, ainda mais para quem tem um pouco de barriga e fica com as duas pontas balançando a bel prazer.

O nó depende da camisa que acompanha a gravata. Para colarinho largo, pede-se um nó mais cheio, que preencha o vértice. Para os demais colarinhos, pede-se um nó que produza um vilume médio. Caíram em desuso os nós finos, muito ultizados na década de 1960, quando se usava gravatas de tecido também muito fino.

Outro fator de influência no nó é o tecido da gravata. Gravatas de seda, mais leves, ieais para dias quentes, proporcionam nós menores. Gravatas de jacquard, uma trama mais grossa, para formar no próprio tecido o padrão da gravata, tendem a produzir nós mais grossos e são mais pesadas, inclusive visualmente. Podem ser usadas também  no verão, mas requerem um n´menos trabalhado, para não formar um volume exagerado.

A gravata de jacquard, que forma desenhos com o próprio padrão,
pede nós mais simples para não fazer muito volume

Quem tem barriga deve considerar o uso do prendedor. O ponto correto é cerca de 20 centimetros acima da ponta da gravata, firmando-a à camisa.

A gravata é também um estado de espírito. Você pode acordar de manhã mais alegre, ou pode pensar que terá uma reunião com gente spria; são decisões que se toma todos os dias. Como é algo que chama a atenção, pense na gravata como seu cartão de visitas, que se apresenta no primeiro contato - e, dizem, a primeira impressão é a que fica.