Não há melhor maneira de fazer alguns achados do que
andar a esmo pela rua. Nas minhas tardes vazias, circulando num dos longos
intervalos do trabalho no abafado quartinho do hotel Cosmopolitan, quando morava em Nova York, acabei
achando por acaso a loja de charutos do senhor Woo, cujo nome já posso
declarar: The Wall Street Humidor.
Ora, todo mundo sabia, em pleno 2005, que charutos
cubanos eram proibidos nos Estados Unidos, por causa do embargo econômico à pequena
ilha comunista, que vigorava desde os anos 1960. Era famosa a história segundo
a qual o presidente John Kennedy, em uma viagem de iate num fim de semana,
teria distribuído charutos cubanos aos seus convidados, dizendo: “Aproveitem,
porque amanhã decretarei o embargo a Cuba”. E todo mundo sabia também que, nos
Estados Unidos, proibido significa, mesmo, proibido. Decidi, então, desafiar a
teoria de que em Nova York tem realmente de tudo.
A loja do doutor Woo ficava na rua Warren, uma
travessa despretensiosa da Broadway, não muito longe da prefeitura, do Ground
Zero e, mais adiante, de Wall Street. Olhei para os charutos atrás do vidro.
Pensei em como chegaria ao âmago da questão e resolvi interpelar o jovem
vendedor atrás do balcão à queima roupa, com a maior naturalidade.
– Eu queria um charuto cubano.
O vendedor quase pulou para trás, de susto. Antes que ele
dissesse qualquer coisa, aproximou-se o dono da loja. Era Woo, apertando seus
olhinhos de chinês. Quis saber a razão da pergunta.
– Sou um jornalista e escritor brasileiro – eu disse,
em inglês. - Conheço um pouco de charutos e queria saber onde e como se
consegue charutos cubanos aqui na cidade.
Para minha surpresa, Woo falava português
perfeitamente. Nunca tinha estado no Brasil, mas tivera uma namorada brasileira
que lhe ensinara o beabá da última, inculta e mais bela flor do Lácio. Por isso
achou-me simpático; disse que eu não podia lhe dar um susto daqueles, podia ser
confundido com algum fiscal.
O salão era comprido. Mais ao fundo, naquele tempo havia
um cercadinho demarcado por uma grade de ferro, com um portão baixo, defendido
pela placa com a inscrição: “Member’s only”. Lá dentro, à vista de quem passava
pela loja, havia uma mesa de doze lugares.
Numa das cadeiras, sentava-se um judeu de larga
circunferência abdominal, usando um pequeno quipá na cabeça bovina, de onde se
desprendia a barba encaracolada. Fumava um churchill enquanto trabalhava ao
laptop, ligado a uma tomada no chão. Woo me levou para os fundos da loja, onde
havia um mezanino e alguns armários invisíveis da entrada.
– Sabe, aqui vem muita gente – disse ele. – Aquele sujeito que está ali fumando, por exemplo, é dono de uma grande companhia de informática. Sua fortuna pessoal ultrapassa os 500 milhões de dólares. A sede da companhia fica aqui perto, tem mais de vinte andares, mas ele vem trabalhar aqui todas as tardes.
– Sabe, aqui vem muita gente – disse ele. – Aquele sujeito que está ali fumando, por exemplo, é dono de uma grande companhia de informática. Sua fortuna pessoal ultrapassa os 500 milhões de dólares. A sede da companhia fica aqui perto, tem mais de vinte andares, mas ele vem trabalhar aqui todas as tardes.
– Por quê? – perguntei.
– Porque lá, como em todos os escritórios, é proibido
fumar.
Com uma chave retirada do próprio bolso, abriu um
grande armário, cheio de caixas de cubanos legítimos.
– Você não pode escrever sobre nada disso aqui – ele
disse. – É proibido nos Estados Unidos, é claro, mas as pessoas, é lógico,
procuram o que há de melhor.
Naquele instante, entrou um sujeito de paletó e
gravata. Woo pediu licença para atendê-lo.
– Só um momento, é um cliente importante.
Cumprimentou o recém-chegado, um americano meio calvo,
num terno impecável; remexeu em seu armário e lhe entregou uma das suas caixas
secretas. Depois que o homem pagou a compra e saiu, levando consigo seus
ouvidos, Woo segredou:
– Aquele ali era o assessor do Rudolph Giuliani –
disse, referindo-se ao respeitadíssimo ex-prefeito da cidade, homem que
implantara a tolerância zero contra o crime e varrera os fumantes com sua cinza
dos escritórios. – Não conte a ninguém, mas o Giuliani adora charutos. E a
gente procura atendê-lo.
Apossei-me ali mesmo de uma carteira de torpedos Romeo
e Julieta. Ao voltar ao salão, parei diante da placa que demarcava o território
onde sentava-se o judeu proibido de trabalhar à vontade dentro de sua própria companhia.
“Member’s Club”. Ele levantou os
olhos na minha direção.
– O que preciso fazer para me tornar membro? –
perguntei.
Ele sorriu, com os dedos cruzados sobre a barriga.
– Creio que apenas entrar.
Foi o que fiz.
Passei a frequentar a loja do senhor Woo. Levava meu
laptop e escrevia na mesa do Member’s
Club, um dos poucos lugares que, talvez por ser integrado por gente
acostumada à discriminação, era o recanto mais democrático e igualitário dos
Estados Unidos – o único no qual fui admitido sem qualquer cerimônia.
Em Nova York, onde se proibia tudo aquilo que se
praticava e vice-versa, a loja do senhor Woo era uma espécie de oásis amigável,
onde se podia cometer pequenos crimes impunemente – pelo menos por algum tempo.
"Em Nova York, onde se proibia tudo aquilo que se praticava e vice-versa..." Eu lhe pergunto, será que mudou? Muito bom. Adorei!
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