Há quinze anos, eu e mais nove camaradas fazemos reuniões toda terceira quinta-feira do mês para degustar vinhos; além de nos tornarmos grandes amigos, experimentamos nesse período algo como 1.500 rótulos diferentes. E, como há um certo ponto na vida em que temos de ter o poder de escolher o que fazer no horário comercial, começamos agora a nos reunir para encontros extras, como na tarde da sexta-feira passada, em que eu e mais três dos confrades nos sentamos para jogar conversa fora e aproveitar para fazer uma pequena degustação às cegas: cada um ficou de levar uma garrafa.
No grupo, estavam Faiçal, empresário do ramo de transportes, cuja adega é legendária entre os conhecedores; Sérgio, engenheiro, e Virgílio, médico. Todos degustadores experimentados; por isso, achei uma boa ocasião para levar o exemplar de Specialties que ganhei de presente num almoço com os executivos na vinícola Santa Carolina, na semana passada. Sabemos há muito tempo que o vinho chileno, como de resto os vinhos do Novo Mundo, tem hoje um padrão comparável aos dos melhores vinhos europeus, tanto na categoria dos vinhos de mesa quanto dos vinhos premium. Porém, há muito preconceito a dissipar. A degustação às cegas com meus amigos experts seria um bom teste.
Sexta-feira à tarde, pedimos mariscos para acompanhar o riesling alsaciano que Virgílio traria para começarmos; como o doutor chegou atrasado, comemos os mariscos com os tintos mesmo, e o alsaciano entrou como hors concours na degustação. Vieram três garrafas dos tintos envolvidas em papel alumínio; o quarto vinho, de Faiçal, a pedido dele, estava no decantador. Normalmente se usa esse truque para não identificar o pinot noir, facilmente denunciado numa degustação às cegas pelo formato bojudo da garrafa. Vir da decantação não disfarçou nada, mas isso não prejudicou o teste, pelo contrário.
Vinho 1: encorpado, bem amadeirado, potente. “Esse é espanhol”, Faiçal disparou, de saída. Olhou para mim. “É o que você trouxe?” “Não sei”, respondi. “Muito bom”, acrescentou ele.
Vinho 2: “outro espanhol”, disse Faiçal. “Ou português”, disse Sérgio. Também encorpado, porém um pouco mais aberto, frutado, que o primeiro. “Também excelente”, disse Faiçal. Virgílio concordou.
Vinho 3: um vinho equilibrado, harmônico, encorpado, prazeroso, com uma personalidade diferente dos anteriores. Francês, cravamos: borgonha. Virgílio ficou quieto. Grande vinho, mas concordamos que os anteriores não deviam nada a este em qualidade.
Vinho 4: por último, o vinho do decantador. Chamou a atenção, primeiro, pela cor. Já esmaecida, indicava o vinho já bem velho. O sabor remeteu imediatamente aos Borgonha. Concordamos todos que devia ser um Borgonha de safra bem antiga, talvez da década de 1970. Muito equilibrado, no ponto de beber, com todo o sabor do vinho bem curtido, embora conservasse ainda, conforme Faiçal observou, alguma acidez. “Ele ainda segura um tempo”.
Tínhamos ali, portanto, pelas impressões da degustação, dois vinhos espanhóis do mesmo nível e dois Borgonha. Bem, eu sabia que um dos “espanhóis” não era espanhol, mas não sabia dizer qual deles era o chileno. Unanimemente, o “Borgonha” do decânter foi escolhido o melhor da rodada. Palmas para Faiçal.
Descobrimos as garrafas.
O vinho 1 era um Pintia, safra 2006. Um dos melhores e mais disputados vinhos da Espanha, elaborado pela Vega Sicília na região de Toro. Ficou famoso por receber 95 pontos de Robert Parker na primeira safra. E recebeu a menção de melhor “Tinto com Madeira” de seu ano pelo Guía Gourmets.
O vinho 2 era o Specialties da Santa Carolina, que passou na degustação às cegas por vinho espanhol. “Muito bom”, disse Faiçal, surpreso. O vinho se torna mais curioso ainda porque é de uva Carignan, menos conhecida que a tradicional tempranillo dos grandes espanhóis. O resultado é um vinho com o mesmo peso, um pouco menos de madeira, e sutilmente mais frutado.
Confrontado com o Pintia, a maior diferença ficou mesmo no preço: enquanto um Pintia 2006 custa 441 reais na importadora (restavam dois exemplares na Mistral, quando liguei; havia safra 2008 por 369 reais), o Specialties está 97,99 reais a garrafa (importador: Casa Flora). Sinal de que a Santa Carolina, uma casa chilena que remonta a 1875, pode ser bem-sucedida na sua iniciativa de mostrar que faz também vinhos de alta qualidade, sem perder sua característica, que é a boa relação entre custo e benefício. Ou melhor: que a qualidade do vinho não se determina pelo preço. Tive que dar razão aos jovens empreendedores que hoje tocam a velha casa chilena.
Vinho 3: Gevrey-Chambertin, Domaine Louis Boillot & Fils, safra 2010. Sem sombra de dúvida um dos grandes borgonhas franceses. Esse, nós matamos a charada.
Vinho 4: a pegadinha do Faiçal. Um pinot noir, característica da Borgonha, como imaginamos, mas com o selo Garagem, do Rio Grande do Sul. O produtor, o Atelier Tormentas, não possui vinhas próprias. Porém, o alquimista Marco Danielle conseguiu fazer um vinho com sabor idêntico a um Borgonha envelhecido, sem que seja preciso esperar: a safra era de 2013. No caso, as uvas vieram do Vinhedo Serena.
A qualidade do vinho não nos surpreendeu tanto: já tínhamos bebido outro vinho do Atelier Tormentas a preço de vinho nacional com qualidade de vinho de Velho Mundo: o Fúlvia, que ficou célebre entre nós, confrades. Vários compraram caixas de Fúlvia depois de uma degustação em que ele levou vantagem sobre vários vinhos superestrelados. O problema é que, pela forma como produz, o Atelier Tormentas tem apenas séries limitadas de cada rótulo. No caso do Garagem, segundo informou Faiçal, não há mais nada para vender – restavam 80 garrafas, e ele comprou todas. Safado.
Conclusão, hoje não se sabe mais nada: o melhor vinho pode vir até mesmo do Brasil. Excluindo raridades como o Garagem, pode-se dizer que o Santa Carolina é um ótimo negócio, com qualidade de vinho europeu e preço convidativo; o Pintia e o Gevrey-Chambertin são ótimos, claro, porém mais difíceis de garimpar e propícios para quem gosta de olhar o rótulo ou colecionadores.
O almoço terminou com as risadas de sempre e uma rodada de chope, conforme uso do Faiçal – “para limpar a serpentina”. Eu preferi ficar de fora. Gosto dos eflúvios remanescentes do vinho. E ninguém reclama da minha cara de satisfação lá no "escritório".
Ficha técnica:
Gevrey-Chambertin, Domaine Louis Boillot & Fils. 2010
Preço: 2000 reais a caixa com 6 (fora impostos). Na Fine & Rare Wines - Londres
Pintia 2006. Região: Toro. Vega Sicilia.
Importador: Mistral
Preço: 441,00
Specialties. Carignan. Valle de Cauquenes 2011
Santa Carolina
Importador: Casa Flora
Preço: 97,99
Pinot Noir Garagem. Vinhedo Serena, do Atelier Tormentas. 2013
Venda: indisponível.
No grupo, estavam Faiçal, empresário do ramo de transportes, cuja adega é legendária entre os conhecedores; Sérgio, engenheiro, e Virgílio, médico. Todos degustadores experimentados; por isso, achei uma boa ocasião para levar o exemplar de Specialties que ganhei de presente num almoço com os executivos na vinícola Santa Carolina, na semana passada. Sabemos há muito tempo que o vinho chileno, como de resto os vinhos do Novo Mundo, tem hoje um padrão comparável aos dos melhores vinhos europeus, tanto na categoria dos vinhos de mesa quanto dos vinhos premium. Porém, há muito preconceito a dissipar. A degustação às cegas com meus amigos experts seria um bom teste.
Sexta-feira à tarde, pedimos mariscos para acompanhar o riesling alsaciano que Virgílio traria para começarmos; como o doutor chegou atrasado, comemos os mariscos com os tintos mesmo, e o alsaciano entrou como hors concours na degustação. Vieram três garrafas dos tintos envolvidas em papel alumínio; o quarto vinho, de Faiçal, a pedido dele, estava no decantador. Normalmente se usa esse truque para não identificar o pinot noir, facilmente denunciado numa degustação às cegas pelo formato bojudo da garrafa. Vir da decantação não disfarçou nada, mas isso não prejudicou o teste, pelo contrário.
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A degustação: o riesling foi hors concours |
Vinho 1: encorpado, bem amadeirado, potente. “Esse é espanhol”, Faiçal disparou, de saída. Olhou para mim. “É o que você trouxe?” “Não sei”, respondi. “Muito bom”, acrescentou ele.
Vinho 2: “outro espanhol”, disse Faiçal. “Ou português”, disse Sérgio. Também encorpado, porém um pouco mais aberto, frutado, que o primeiro. “Também excelente”, disse Faiçal. Virgílio concordou.
Vinho 3: um vinho equilibrado, harmônico, encorpado, prazeroso, com uma personalidade diferente dos anteriores. Francês, cravamos: borgonha. Virgílio ficou quieto. Grande vinho, mas concordamos que os anteriores não deviam nada a este em qualidade.
Vinho 4: por último, o vinho do decantador. Chamou a atenção, primeiro, pela cor. Já esmaecida, indicava o vinho já bem velho. O sabor remeteu imediatamente aos Borgonha. Concordamos todos que devia ser um Borgonha de safra bem antiga, talvez da década de 1970. Muito equilibrado, no ponto de beber, com todo o sabor do vinho bem curtido, embora conservasse ainda, conforme Faiçal observou, alguma acidez. “Ele ainda segura um tempo”.
Tínhamos ali, portanto, pelas impressões da degustação, dois vinhos espanhóis do mesmo nível e dois Borgonha. Bem, eu sabia que um dos “espanhóis” não era espanhol, mas não sabia dizer qual deles era o chileno. Unanimemente, o “Borgonha” do decânter foi escolhido o melhor da rodada. Palmas para Faiçal.
Descobrimos as garrafas.
O vinho 1 era um Pintia, safra 2006. Um dos melhores e mais disputados vinhos da Espanha, elaborado pela Vega Sicília na região de Toro. Ficou famoso por receber 95 pontos de Robert Parker na primeira safra. E recebeu a menção de melhor “Tinto com Madeira” de seu ano pelo Guía Gourmets.
O vinho 2 era o Specialties da Santa Carolina, que passou na degustação às cegas por vinho espanhol. “Muito bom”, disse Faiçal, surpreso. O vinho se torna mais curioso ainda porque é de uva Carignan, menos conhecida que a tradicional tempranillo dos grandes espanhóis. O resultado é um vinho com o mesmo peso, um pouco menos de madeira, e sutilmente mais frutado.
Confrontado com o Pintia, a maior diferença ficou mesmo no preço: enquanto um Pintia 2006 custa 441 reais na importadora (restavam dois exemplares na Mistral, quando liguei; havia safra 2008 por 369 reais), o Specialties está 97,99 reais a garrafa (importador: Casa Flora). Sinal de que a Santa Carolina, uma casa chilena que remonta a 1875, pode ser bem-sucedida na sua iniciativa de mostrar que faz também vinhos de alta qualidade, sem perder sua característica, que é a boa relação entre custo e benefício. Ou melhor: que a qualidade do vinho não se determina pelo preço. Tive que dar razão aos jovens empreendedores que hoje tocam a velha casa chilena.
Vinho 3: Gevrey-Chambertin, Domaine Louis Boillot & Fils, safra 2010. Sem sombra de dúvida um dos grandes borgonhas franceses. Esse, nós matamos a charada.
Vinho 4: a pegadinha do Faiçal. Um pinot noir, característica da Borgonha, como imaginamos, mas com o selo Garagem, do Rio Grande do Sul. O produtor, o Atelier Tormentas, não possui vinhas próprias. Porém, o alquimista Marco Danielle conseguiu fazer um vinho com sabor idêntico a um Borgonha envelhecido, sem que seja preciso esperar: a safra era de 2013. No caso, as uvas vieram do Vinhedo Serena.
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O painel |
A qualidade do vinho não nos surpreendeu tanto: já tínhamos bebido outro vinho do Atelier Tormentas a preço de vinho nacional com qualidade de vinho de Velho Mundo: o Fúlvia, que ficou célebre entre nós, confrades. Vários compraram caixas de Fúlvia depois de uma degustação em que ele levou vantagem sobre vários vinhos superestrelados. O problema é que, pela forma como produz, o Atelier Tormentas tem apenas séries limitadas de cada rótulo. No caso do Garagem, segundo informou Faiçal, não há mais nada para vender – restavam 80 garrafas, e ele comprou todas. Safado.
Conclusão, hoje não se sabe mais nada: o melhor vinho pode vir até mesmo do Brasil. Excluindo raridades como o Garagem, pode-se dizer que o Santa Carolina é um ótimo negócio, com qualidade de vinho europeu e preço convidativo; o Pintia e o Gevrey-Chambertin são ótimos, claro, porém mais difíceis de garimpar e propícios para quem gosta de olhar o rótulo ou colecionadores.
O almoço terminou com as risadas de sempre e uma rodada de chope, conforme uso do Faiçal – “para limpar a serpentina”. Eu preferi ficar de fora. Gosto dos eflúvios remanescentes do vinho. E ninguém reclama da minha cara de satisfação lá no "escritório".
Ficha técnica:
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O campeão: infelizmente, esgotado. Obrigado, faiçal! |
Gevrey-Chambertin, Domaine Louis Boillot & Fils. 2010
Preço: 2000 reais a caixa com 6 (fora impostos). Na Fine & Rare Wines - Londres
Pintia 2006. Região: Toro. Vega Sicilia.
Importador: Mistral
Preço: 441,00
Specialties. Carignan. Valle de Cauquenes 2011
Santa Carolina
Importador: Casa Flora
Preço: 97,99
Pinot Noir Garagem. Vinhedo Serena, do Atelier Tormentas. 2013
Venda: indisponível.
É, Thales, essas coisas acontecem... Abração, DL
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