A cachaça já teve seu tempo de Gata Borralheira, mas hoje é
princesa nas mesas mais exigentes
Foi há 20 anos, em uma viagem de aventura pelo rio Araguaia,
que encontrei o Holandês. Barba loura, olhos azuis e queixo de viking, falando
um português nórdico, lembrava o capitão Nemo. Era mesmo capitão, só que de uma
embarcação enferrujada de três andares, ao estilo das gaiolas, onde levava
turistas aventureiros para passeios em torno da Ilha do Bananal. No tempo da
seca, quando o nível das águas baixava, impossibilitando a navegação, o
Holandês encalhava a nau na barranca da vila de Aruanã, transformada num
estranho restaurante com inclinação de 45 graus. Assim como a figura do
anfitrião, o serviço era surpreendente: uma deliciosa isca de peixe com molho
de tomate apimentado, regada com uma cachaça dourada, perfumada e doce,
combinação que me pareceu transcendental, ainda mais ao som de Paco de Lucia,
que reverberava pela selva como num filme de Herzog.
Algum tempo atrás, os gourmets descobriram que a cachaça, o
mais barato e popular destilado brasileiro, pode adquirir a condição de bebida
para cavalheiros, prova da civilidade e da sua resistência, já que tem mais de
40 graus de teor alcoólico. Assim como o fondue nasceu pela mão dos mendigos,
que juntavam os restos de queijo para forrar o estômago nos dias gelados da
Suíça, boa parte da alta gastronomia nasceu de origens plebeias, melhorada com
a técnica e o apuro de paladares sábios.
Gata borralheira, a nossa cachacinha ganhou seu momento de
Cinderela com as versões premium espalhadas no mercado. Da conotação
pejorativa, ela passou a ser sinal distintivo para bares e restaurantes que
trazem rótulos especiais, além de alvo de diletantes, que vivem pesquisando, em
busca da cachaça perfeita.
“O interesse pelas cachaças premium reflete o aumento da
qualidade da bebida. Os produtores passaram a ter mais cuidado e adotar
processos de envelhecimento, o que melhora as características e o saber. Dentro
da enorme diversidade de rótulos, encontrar a melhor cachaça é como buscar o
Santo Graal. Até porque a noção de “melhor” é sempre pessoal, vinculadas as
experiências sensoriais, como a minha passagem pelo Araguaia.
Estima-se que existam cerca de 4 mil rótulos de cachaça no
Brasil, sem contar o produto doméstico. De longe o destilado mais popular do
país, perde em volume de vendas somente para a cerveja. A cachaça é feita de
duas maneiras. Uma é industrial, com a destilação em colunas de aço inox, que
permite a produção em larga escala. Esse processo, semelhante ao de outras aguardentes,
como a vodca, a tequila e o gim, está concentrada na mão de um punhado de
empresas sediadas em São Paulo, Ceará e Pernambuco, que fazem 60% do mais de 1
bilhão de litros anuais de cachaça.
Mesmo as grandes indústrias procuram hoje produzir
exemplares premium para conquistar clientes mais seletos. Com os processos de
múltipla destilação, que tornam a cachaça mais pura, além do envelhecimento, o
curtimento em tonéis de madeira e a aromatização, são produzidas
industrialmente séries especiais da maior qualidade e diferentes sabores.
Os 40% restantes da produção vêm de 30 mil pequenos
engenhos, que fazem a bebida tradicional – destilada em alambiques de cobre,
como o uísque. No drinque ou puras, são ainda as melhores, sobretudo as
envelhecidas.
Cerca da metade desses engenhos menores fica em Minas
Gerais, o maior produtor de cachaça do país. Uma garrafa de Anísio Santiago,
feita em salinas, no vale do Jequitinhonha, ao norte de Belo Horizonte, para
muitos o epicentro dos melhores fabricantes do país, é vendida ao preço dos
grandes uísques.
Também de Salinas vem a Lua Cheia, considerada uma das
melhores pingas do Brasil, mais outras 35 marcas registradas e uma centena sem
registro. De Araguari chega a GRM (Gosto Requintado Mundial), envelhecida em
barris de carvalho, umburana e jequitibá rosa, lançada em 2002, em Paris,
concebida como uma cachaça super-artesanal de exportação.
De São Tiago, perto de São João Del Rey, é a tradicional
Espírito de Minas, encontrada em bons bares das grandes capitais. Em Minas, não
há nenhum fabricante industrial de cachaça, o que se explica por origens
históricas e culturais ligadas ao próprio espírito da bebida.
Minas Gerais e a cachaça artesanal caminham juntos desde o
Ciclo do Ouro, iniciado em 1750, quando mais de 5 mil engenhos foram criados
para produzir rapadura e aguardente de forma a atender os garimpeiros, que
acorriam aos borbotões. Com a crescente frustração do garimpo de aluvião, eles
desapareceram, mas os alambiques ficaram.
A essa particularidade juntaram-se os hábitos gastronômicos
da sociedade mineira. A cachaça é uma parceira perfeita para a maioria dos
pratos de sua cozinha tradicional. Difícil imaginar o tutu de feijão sem
cachaça, tomada como deve ser, pura e em temperatura ambiente, num copo de
vidro em miniatura. E muita gente não come uma boa feijoada sem uma caipirinha,
servida em copo largo e raso, como o de uísque.
A caipirinha hoje é muito festejada no exterior, depois de
aparecer em revistas domo a Wallpaper e a In Style. Sua difusão é a principal
causa da multiplicação das exportações brasileiras de cachaça industrializada.
A marca Sagatiba chegou a ser exportada para 13 países dos estados Unidos ao
Taiti. Para abrir portas, foi testada pelo Beverage Testing Institute, o
principal instituo de análise de bebidas alcoólicas dl mundo, nos Estados
Unidos. No ranking do BTI, a Sagatiba ouro recebeu 91 pontos dos 100 possíveis,
um a menos que a Sagatiba Velha, mistura de boas safras de cachaças de
alambique, com dois anos de envelhecimento em tonéis de madeira.
Existem entre as cachaças verdadeiras raridades. A Sagatiba
preciosa, edição limitada do lote de 1982, foi envelhecida 23 anos em barris de
carvalho, descobertos em 2004 pelo fabricante – a casa Sagatiba, que funciona
desde 1906 em Ribeirão preta. O conteúdo dos barris foi filtrado e
acondicionado em garrafas exclusivas de vidro francês, produzidas pela
Saverglass, em Paris. Recebeu 96 pontos do BTI, o que a colocou como a 26ª.
Bebida destilada mais bem pontuada do planeta. Três garrafas da preciosa foram
leiloadas na Christie’s, de Londres: primeira vez em que a nossa pinga apareceu
na casa de leilões mais renomada do mundo.
A história da cachaça
vem do tempo em que os portugueses trouxeram a cana-de-açúcar na ilha da
Madeira para o Brasil, a partir de 1532. Tecnicamente, há uma diferença entre a
aguardente (designação geral de qualquer destilado) e a cachaça (proveniente da
destilação do melaço resultante da produção de açúcar de cana. Devido a isso, a
cachaça tem o sabor mais adocicado que o da vodca e outras aguardentes.
Em sua forma artesanal, a bebida é fermentada naturalmente
pelo período de 18 a 36 horas. Depois, é volatilizada no alambique, escoando
pelo capelo até a serpentina, onde volta à forma líquida. Descartam-se os 10%
iniciais e finais da destilação, que contém impurezas, e aproveita-se o
restante. A cachaça é incolor, mas pode ficar amarelada ou dourada com melados
ou frações. O envelhecimento em barris também modifica buquê, corpo e sabor. Os
de madeira fazem a bebida reagir, tornando-a mais macia, e pode mudar sua cor.
Os tonéis mais usados são o bálsamo, que produz uma bebida
mais encorpada, e ais recentemente os de carvalho. A mineira Domina, voltada
para o público feminino, como sugere o rótulo cor-de-rosa, envelhece em barris
de jatobá, madeira absorvente de álcool e retentora de água, que a deixa mais
suave.
Como produto do amor de quem faz, do cuidado especial
inviável em artigos de larga escala, a cachaça estimula a produção para consumi
próprio. Como resultado desse interesse elitizado, multiplicaram-se os bares especializados.
No Rio de Janeiro, o Garapa Doida oferece centenas de rótulos. Assim como
acontece com os vinhos, o restaurante Giuseppe Grill tem uma cara para o
cliente escolher sua pinga. O Mangue Seco adotou o “cachacier”, os sommelier de
cachaça.
É bom trazer a cachaça artesanal para a cidade grande, mas
gostoso mesmo é pesquisa-la in loco. E cada um pode ter assim uma experiência
mais interessante. A minha cachaça favorita é a envelhecida de Amélia,
tradicional nas cidadezinhas da serra da Mantiqueira, na divisa entre São Paulo
e Minas Gerais, e que pode ser encontrada no Bar do Marcelo, na praça central
de Gonçalves, entre prateleiras de títulos brejeiros, como Pinissilina, Magnífica,
caprichosa, Boazinha e Nega Fulô.
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