sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Cinderela tropical

A cachaça já teve seu tempo de Gata Borralheira, mas hoje é princesa nas mesas mais exigentes

Foi há 20 anos, em uma viagem de aventura pelo rio Araguaia, que encontrei o Holandês. Barba loura, olhos azuis e queixo de viking, falando um português nórdico, lembrava o capitão Nemo. Era mesmo capitão, só que de uma embarcação enferrujada de três andares, ao estilo das gaiolas, onde levava turistas aventureiros para passeios em torno da Ilha do Bananal. No tempo da seca, quando o nível das águas baixava, impossibilitando a navegação, o Holandês encalhava a nau na barranca da vila de Aruanã, transformada num estranho restaurante com inclinação de 45 graus. Assim como a figura do anfitrião, o serviço era surpreendente: uma deliciosa isca de peixe com molho de tomate apimentado, regada com uma cachaça dourada, perfumada e doce, combinação que me pareceu transcendental, ainda mais ao som de Paco de Lucia, que reverberava pela selva como num filme de Herzog.

Pode parecer estranho pensar em uma cachaça bebida tão longe e há tanto tempo, mas o Holandês passou a representar para mim uma marca da civilização. O refinamento vai com o homem onde ele estiver e produz as melhores coisas com o mais simples e nos lugares mais improváveis. Foi assim com aquele peixe apimentado e, acima de tudo, a cachaça do alambique local. “Foi envelhecida em tonéis de barro”, contou-se o capitão. “Não há nada melhor.”

Algum tempo atrás, os gourmets descobriram que a cachaça, o mais barato e popular destilado brasileiro, pode adquirir a condição de bebida para cavalheiros, prova da civilidade e da sua resistência, já que tem mais de 40 graus de teor alcoólico. Assim como o fondue nasceu pela mão dos mendigos, que juntavam os restos de queijo para forrar o estômago nos dias gelados da Suíça, boa parte da alta gastronomia nasceu de origens plebeias, melhorada com a técnica e o apuro de paladares sábios.

Gata borralheira, a nossa cachacinha ganhou seu momento de Cinderela com as versões premium espalhadas no mercado. Da conotação pejorativa, ela passou a ser sinal distintivo para bares e restaurantes que trazem rótulos especiais, além de alvo de diletantes, que vivem pesquisando, em busca da cachaça perfeita. 

“O interesse pelas cachaças premium reflete o aumento da qualidade da bebida. Os produtores passaram a ter mais cuidado e adotar processos de envelhecimento, o que melhora as características e o saber. Dentro da enorme diversidade de rótulos, encontrar a melhor cachaça é como buscar o Santo Graal. Até porque a noção de “melhor” é sempre pessoal, vinculadas as experiências sensoriais, como a minha passagem pelo Araguaia.

Estima-se que existam cerca de 4 mil rótulos de cachaça no Brasil, sem contar o produto doméstico. De longe o destilado mais popular do país, perde em volume de vendas somente para a cerveja. A cachaça é feita de duas maneiras. Uma é industrial, com a destilação em colunas de aço inox, que permite a produção em larga escala. Esse processo, semelhante ao de outras aguardentes, como a vodca, a tequila e o gim, está concentrada na mão de um punhado de empresas sediadas em São Paulo, Ceará e Pernambuco, que fazem 60% do mais de 1 bilhão de litros anuais de cachaça.

Mesmo as grandes indústrias procuram hoje produzir exemplares premium para conquistar clientes mais seletos. Com os processos de múltipla destilação, que tornam a cachaça mais pura, além do envelhecimento, o curtimento em tonéis de madeira e a aromatização, são produzidas industrialmente séries especiais da maior qualidade e diferentes sabores.

Os 40% restantes da produção vêm de 30 mil pequenos engenhos, que fazem a bebida tradicional – destilada em alambiques de cobre, como o uísque. No drinque ou puras, são ainda as melhores, sobretudo as envelhecidas.

Cerca da metade desses engenhos menores fica em Minas Gerais, o maior produtor de cachaça do país. Uma garrafa de Anísio Santiago, feita em salinas, no vale do Jequitinhonha, ao norte de Belo Horizonte, para muitos o epicentro dos melhores fabricantes do país, é vendida ao preço dos grandes uísques.

Também de Salinas vem a Lua Cheia, considerada uma das melhores pingas do Brasil, mais outras 35 marcas registradas e uma centena sem registro. De Araguari chega a GRM (Gosto Requintado Mundial), envelhecida em barris de carvalho, umburana e jequitibá rosa, lançada em 2002, em Paris, concebida como uma cachaça super-artesanal de exportação.

De São Tiago, perto de São João Del Rey, é a tradicional Espírito de Minas, encontrada em bons bares das grandes capitais. Em Minas, não há nenhum fabricante industrial de cachaça, o que se explica por origens históricas e culturais ligadas ao próprio espírito da bebida.

Minas Gerais e a cachaça artesanal caminham juntos desde o Ciclo do Ouro, iniciado em 1750, quando mais de 5 mil engenhos foram criados para produzir rapadura e aguardente de forma a atender os garimpeiros, que acorriam aos borbotões. Com a crescente frustração do garimpo de aluvião, eles desapareceram, mas os alambiques ficaram.

A essa particularidade juntaram-se os hábitos gastronômicos da sociedade mineira. A cachaça é uma parceira perfeita para a maioria dos pratos de sua cozinha tradicional. Difícil imaginar o tutu de feijão sem cachaça, tomada como deve ser, pura e em temperatura ambiente, num copo de vidro em miniatura. E muita gente não come uma boa feijoada sem uma caipirinha, servida em copo largo e raso, como o de uísque.

A caipirinha hoje é muito festejada no exterior, depois de aparecer em revistas domo a Wallpaper e a In Style. Sua difusão é a principal causa da multiplicação das exportações brasileiras de cachaça industrializada. A marca Sagatiba chegou a ser exportada para 13 países dos estados Unidos ao Taiti. Para abrir portas, foi testada pelo Beverage Testing Institute, o principal instituo de análise de bebidas alcoólicas dl mundo, nos Estados Unidos. No ranking do BTI, a Sagatiba ouro recebeu 91 pontos dos 100 possíveis, um a menos que a Sagatiba Velha, mistura de boas safras de cachaças de alambique, com dois anos de envelhecimento em tonéis de madeira.


Existem entre as cachaças verdadeiras raridades. A Sagatiba preciosa, edição limitada do lote de 1982, foi envelhecida 23 anos em barris de carvalho, descobertos em 2004 pelo fabricante – a casa Sagatiba, que funciona desde 1906 em Ribeirão preta. O conteúdo dos barris foi filtrado e acondicionado em garrafas exclusivas de vidro francês, produzidas pela Saverglass, em Paris. Recebeu 96 pontos do BTI, o que a colocou como a 26ª. Bebida destilada mais bem pontuada do planeta. Três garrafas da preciosa foram leiloadas na Christie’s, de Londres: primeira vez em que a nossa pinga apareceu na casa de leilões mais renomada do mundo.

A  história da cachaça vem do tempo em que os portugueses trouxeram a cana-de-açúcar na ilha da Madeira para o Brasil, a partir de 1532. Tecnicamente, há uma diferença entre a aguardente (designação geral de qualquer destilado) e a cachaça (proveniente da destilação do melaço resultante da produção de açúcar de cana. Devido a isso, a cachaça tem o sabor mais adocicado que o da vodca e outras aguardentes.

Em sua forma artesanal, a bebida é fermentada naturalmente pelo período de 18 a 36 horas. Depois, é volatilizada no alambique, escoando pelo capelo até a serpentina, onde volta à forma líquida. Descartam-se os 10% iniciais e finais da destilação, que contém impurezas, e aproveita-se o restante. A cachaça é incolor, mas pode ficar amarelada ou dourada com melados ou frações. O envelhecimento em barris também modifica buquê, corpo e sabor. Os de madeira fazem a bebida reagir, tornando-a mais macia, e pode mudar sua cor.

Os tonéis mais usados são o bálsamo, que produz uma bebida mais encorpada, e ais recentemente os de carvalho. A mineira Domina, voltada para o público feminino, como sugere o rótulo cor-de-rosa, envelhece em barris de jatobá, madeira absorvente de álcool e retentora de água, que a deixa mais suave.
Como produto do amor de quem faz, do cuidado especial inviável em artigos de larga escala, a cachaça estimula a produção para consumi próprio. Como resultado desse interesse elitizado, multiplicaram-se os bares especializados. No Rio de Janeiro, o Garapa Doida oferece centenas de rótulos. Assim como acontece com os vinhos, o restaurante Giuseppe Grill tem uma cara para o cliente escolher sua pinga. O Mangue Seco adotou o “cachacier”, os sommelier de cachaça.

É bom trazer a cachaça artesanal para a cidade grande, mas gostoso mesmo é pesquisa-la in loco. E cada um pode ter assim uma experiência mais interessante. A minha cachaça favorita é a envelhecida de Amélia, tradicional nas cidadezinhas da serra da Mantiqueira, na divisa entre São Paulo e Minas Gerais, e que pode ser encontrada no Bar do Marcelo, na praça central de Gonçalves, entre prateleiras de títulos brejeiros, como Pinissilina, Magnífica, caprichosa, Boazinha e Nega Fulô.

Deu vontade de viajar?  

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